Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

29 março, 2020


Diário Intermitente da Pandemia do Novo Coronavírus SARS-CoV-2


José Manuel Catarino Soares


Em 26 de março de 2020 entrámos, em Portugal, na fase 3.2 de mitigação da pandemia do coronavírus SARS-CoV-2. Decidi, por isso, iniciar hoje, domingo, dia 29 de Março de 2020, um diário (intermitente) desta pandemia.

A motivação para o fazer é a de combater, tanto quanto está ao meu alcance fazê-lo, a desinformação (Ingl. “fake news”), a ignorância, os mitos e as fabulações conspirativas que circulam por aí, em catadupas e à velocidade da luz, sobre esta pandemia — sobre as suas origens, as suas causas, a sua propagação, sobre a forma de a combater, sobre as suas implicações, os seus efeitos e as suas consequências.

O meu ponto de vista será politológico — sendo a politologia (= o estudo sociológico da política) concebida como o ramo cívico da ética, da praxiologia e da sociotecnologia.  

A pandemia actual já mostrou ser um grande revelador de crenças, comportamentos e hábitos profundamente enraizados mas falsos e contraproducentes. Já mostrou também ser um grande revelador de imensas lacunas e confusões nos conhecimentos científicos elementares da população, em particular no campo da biologia. São esses aspectos que procurarei analisar e esclarecer, tanto quanto me for possível fazê-lo. Espero com isso conseguir contribuir para aumentar a capacidade de discernimento e levantar o moral dos leitores que visitem este blogue, além de instruir-me a mim próprio.

Investigadores do novo Coronavírus no Centro  Enshi para o Controlo e Prevenção da Doença (China). Fevereiro de 2020.  Foto de Yang Shunpi Xinhua, Eyvine, Redudu

O Diário da Pandemia do novo coronovírus SARS-CoV-2 que agora inicio é intermitente porque não o escreverei todos os dias, mas só quando me parecer que tenho coisas para dizer suficientemente interessantes para serem ditas em público. É um diário que fundirá, dada a sua índole, os diversos temas que estão inscritos no frontispício deste blogue e abrangerá também outros temas que os ultrapassam. Assim sendo, constitui uma ruptura com a linhagem dos artigos anteriores deste blogue que eram tematicamente compartimentados.

Todavia, há uma coisa que se mantém constante: não consigo lembrar-me, na presente conjuntura, de um assunto mais orwelliano do que a pandemia actual, em ambos sentidos do adjectivo “orwelliano” (v. a coluna “Sobre George Orwell” à direita deste texto).

01 janeiro, 2020


temas 2 e 3


Na câmara escura de uma escola superior de educação:
uniformização, controle e vigilância, infantilização, multimediatização

Ana Laura Metelo Valadares

………………………………………………………………………………………………….................
Luís Souta, PEDAGOGIA S. 45 narrativas curtas sobre o Ensino Superior na perspectiva (desconstrutivista) do Prof. S. Edições ex-Libris® (Chancela Sítio do Livro). 1ª edição, Junho de 2019. 210 páginas. ISBN: 978‑989-8867-64-3. Hiperligação /Products/9789898867643
………………………………………………………………………………………………….................

Pedagogia S. constitui um testemunho do quotidiano “académico” de uma escola superior de educação de um instituto politécnico português da rede pública. Esse testemunho advém da descrição do dia-a-dia da comunidade escolar que evoca, por vezes, a descrição etnográfica.

A pertença do autor à comunidade educativa, enquanto professor, confere à descrição uma dimensão necessariamente subjectiva; ao descrever a realidade escolar, o autor recorre, quer ao seu profundo conhecimento dos factores externos que condicionam essa realidade — nomeadamente, as directivas nacionais e internacionais de política educativa —, quer à sua longa experiência de vida comunitária escolar. Conhecimento e experiência permitem-lhe problematizar a realidade observada, dando-nos conta dos pensamentos e sentimentos que a experiência vivida, anotada e reflectida nele acordam. Fá-lo revelando um sentido de humor complacente e um sentido crítico atribulado e benigno, muito atento, dando-nos igualmente conta das suas interrogações e perplexidades, do seu desencanto, da sua paciência e perseverança, também da sua esperança.
 
O autor organiza a sua descrição em torno de práticas do quotidiano da sua escola e de reflexões, ocasionalmente desabafos, sobre temas que essas práticas suscitam.  Procura seguir um fio condutor temporal — grosso modo do início ao final de um ano lectivo (fio esse que revela, por si só, que, pelo menos para os professores, o ano lectivo parece não ter início, nem fim...).  Cito títulos como “Constituição de Turmas”, “Trabalhos de grupo”, ... mas também “Agarrados ao computador”, “Quando o telemóvel toca”, ou “Andar ao Engano”, “Paternalismo”, ou ainda “Bolonha, o Embuste”, “Do CTeSP ao doutoramento”.

O olhar do autor sobre a sua escola, cuja função reprodutiva das práticas sociais e discursivas envolventes lhe não escapa, permite ao leitor um segundo olhar sobre a realidade descrita e o seu contexto. E é desse olhar, no caso o meu, que eu vou dar conta em seguida.

Da leitura sobre as práticas sociais e discursivas da escola xpto (como lhe chama o autor) emergem para mim, como traços fundamentais da vida escolar, a uniformização, o excesso de controles reguladores e de vigilância, a infantilização dos alunos e a multimediatização. Para efeitos de análise, utilizarei exemplos para abordar cada um destes traços, retirando-os do livro e recorrendo muitas vezes às próprias palavras do autor. Não posso deixar de notar, desde já, que estes traços caracterizam igualmente a sociedade contemporânea, de que o sistema educativo é uma parcela. E também dizer que este traços co-ocorrem na interacção educativa, separando-os eu apenas para efeito de análise.

Uniformização

A uniformização permite o controlo das práticas educativas e dos seus sujeitos. Ela ocorre por diversas vias: focarei sobretudo as orientações exógenas e o uso alargado de um registo, ou jargão, educacional. Mas, de um modo geral, o efeito uniformizador revela-se na equiparação (e desvalorização) dos graus académicos, na equiparação dos sub-sistemas do ensino superior (as escolas politécnicas já podem outorgar o grau de doutor), no nivelamento de notas de alunos e professores (tendem a agregar-se no topo das escalas de classificação), na crença generalizada em um só modelo de aprendizagem (o construtivismo colaborativo) e na padronização das metodologias de ensino, dos métodos de avaliação de alunos, dos métodos e instrumentos de avaliação das instituições e seus profissionais, etc...

Focarei então em seguida o efeito uniformizador das orientações exógenas e do jargão educacional.

As orientações exógenas traçam o rumo e os caminhos da vida académica. Ao referir-se à Declaração de Bolonha (1999), que virou de sopetão o sistema de ensino superior em Portugal de pernas para o ar, Luís Souta escreve que “ficar cada vez mais igual aos outros era na época (como hoje) um objectivo central, também no domínio educativo”. Para atingir essa igualdade concorrem as rígidas e pormenorizadas directrizes de desenvolvimento curricular (de categorias fixas e imutáveis), incluindo as orientações centrais para a elaboração do calendário escolar e dos horários, bem como os instrumentos de avaliação. Quase tudo é regulamentado de forma centralizada, não deixando espaço para a tão propalada autonomia das escolas e a emancipação dos seus membros.

Os 48 países (incluindo os 28 da União Europeia) que integram o chamado Espaço Europeu do Ensino Superior, resultado institucional do processo político de uniformização iniciado pela Declaração de Bolonha (1999). Mapa de MacedonianBoy.

A uniformização passa igualmente pelo uso generalizado de um jargão educacional, que anula a pessoa que a usa e que muitos designam, a meu ver bem, por eduquês. O eduquês é rico em novas designações para velhos objectos e velhos conceitos (disciplina passa a “unidade curricular”, paralelo de “unidade empresarial”, aulas a “horas de contacto”); é também rico em siglas e acrónimos imprescrutáveis, o mais ridículo dos quais talvez seja a sigla inglesa ECTS (European Credit Transfer System) — dizem os colegas do Professor S. que uma “unidade curricular” tem x ECTSes, ou seja, que ela tem x sistemas de transferência de créditos… De que registo linguístico virão as “transferências” e os “créditos” ?!... Decerto do financês, essa fonte inspiradora de muitos -eses... O jargão educacional está recheado de empréstimos do inglês e de anglicismos: por exemplo, e-learning, upgrading, ranking, data-show; videoclipe, webgrafia, orientações tutórias. Estas importações linguísticas em catadupa, acriticamente usadas numa clara demonstração de submissa aculturação, distanciam a pessoa da sua identidade. O eduquês apresenta-se como uma variedade linguística “técnica”, reduzindo a língua natural a um código. O seu uso não emancipa, submete. E sufoca.

Excesso de controles reguladores e de vigilância

A uniformização permite o controle dos membros da comunidade educativa, que são excessivamente vigiados. E aqui passo a abordar o segundo traço — o excesso de controles reguladores e de vigilância — que parece decorrer sobretudo de uma obsessão com a avaliação — institucional, profissional, académica. Há sede de uma permanente justificação e prestação de contas formatada externa e internamente, quer para instituições, quer para professores, quer para alunos (virá de onde, esta sede que reproduz a papagueada produtividade ?!).

Abordarei duas estratégias de controle, uma relativa aos docentes — a avaliação do desempenho docente, outra relativa aos alunos, constituída pelos ubíquos trabalhos de grupo.

Previamente direi, porém, que o ambiente geral da escola parece ser um ambiente de excesso, de falta de limites — parece haver uma necessidade imposta, externa e internamente, de ocupar quase totalmente as horas do dia (e da noite) de professores e alunos. A esmagadora multiplicidade de tarefas do professor, a “overdose curricular” (citando o autor) correspondente a uma carga horária considerada excessiva e a uma fragmentação disciplinar traduzida em cursos de apenas cadeiras de 45 horas no 1º ano (algumas das quais, aliás, com designações muito bizarras, como “Carteira de Competências”),  as ofertas alternativas que permitem a dispensa das aulas (“eventos paralelos, a não perder”), tudo isto indica o medo da pausa e do descanso, do silêncio reflexivo e da interioridade.

Abordemos então o excesso de controles reguladores e de vigilância ilustrado pela avaliação de desempenho dos docentes, que decorre sob a égide da A3AES (Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior). Segundo o autor, a A3AES é “especializada em sugar tempo aos professores” e (...) “marca a reorientação formativa”. Luís Souta chama-lhe “esse big brother de avaliação e acreditação que, na sua inflexibilidade e rigor burocráticos, mantém a espada de Dâmocles, permanentemente, sobre os politécnicos e as universidades”. O autor dá-nos conta de um complicado pacote de ficheiros electrónicos que, de uma assentada, se destinava a avaliar os últimos catorze anos de actividade profissional dos docentes. No final de um complexo e exaustivo programa que envolvia, além dos docentes, uma comissão de avaliação da própria escola, também ela avaliada, constatou-se que, em vez da curva normal esperada, quase todos os docentes se acantonavam num dos extremos da curva, com a nota de EXCELENTE.  Alguns outros tiveram só MUITO BOM, coitados.

Há muitas outras avaliações, de resto, por exemplo a ficha curricular de cada disciplina a preencher pelo respectivo docente em 3000 caracteres de eduquês...

O outro exemplo que escolhi para ilustrar o excesso de controles reguladores e de vigilância diz respeito aos trabalhos de grupo dos alunos. O trabalho de grupo parece surgir, sobretudo, como alternativa aos exames, pavor académico, quer por parte dos professores, quer, sobretudo, dos alunos — decerto devido à crença generalizada de que os exames não avaliam competências cognitivas de ordem superior, criando, ainda para mais, ansiedade nos alunos! 

O autor escreve sobre trabalhos realizados à “fatia”, dizendo-nos que cada membro do grupo só fica a conhecer a sua fatia, ignorando as dos outros colegas do grupo. O trabalho de grupo acaba assim por ser um declarado embuste.

Os trabalhos, entregues à última hora, são corrigidos à lufa-lufa, numa “maratona” realizada a desoras, em casa. Como o autor escreve, sente-se “condenado a ler, anotar, corrigir e classificar uma catrefada de trabalhos pindéricos”. De notar que os alunos não chegam a recolher os trabalhos corrigidos e avaliados...

Há no trabalho de grupo algum grau de ludificação, no sentido em que é utilizado para enriquecer o contexto e motivar os alunos, envolvendo-os. A ludificação é, de resto, uma técnica de publicidade para incentivar o envolvimento do consumidor com o produto ou serviço. A tendência para a ludificação e sua componente de gratificação imediata parece impor-se na escola e relaciona-se em parte com o terceiro traço da vida escolar, a infantilização no tratamento dos alunos.

A infantilização no tratamento dos alunos

A necessidade imposta, externa e internamente, de ocupar quase totalmente as horas do dia (e da noite) de professores e alunos parece ter invadido e entranhado a mente e a alma docentes. Os professores assemelham-se a átomos perdidos uns dos outros, mas cumprindo cada um deles, obedientemente e até extravasando, os ditames impostos (vem-me à ideia o conceito de auto-exploração do filósofo germano-coreano Byung-Chen Han, exposto no seu livro de 2014, Psicopolítica). A atitude dos professores para com os alunos reveste-se de paternalismo, cabendo naturalmente aos alunos o papel de filhos (rebeldes).

Parece-me que os alunos se defendem como podem do excesso escolar, escapando às aulas e tutorias, entrando tarde e saindo cedo, entrando e saindo a seu bel-prazer durante a aula, pedindo coisas e serviços ao professor: pausas para café, dispensa das aulas, dilatação dos prazos de entrega dos trabalhos, informações básicas sobre tudo e nada; refugiando-se nas violentas praxes, legalmente apadrinhadas pela escola, nas festas (queima das fitas, cortejos, espectáculos) e nas estadias académico-balneares ERASMUS. Refugiam-se e evadem-se: usam o computador e o telemóvel em plena aula, encerrados nas suas comunicações privadas.
Parece não haver regras.

Os comportamentos dos alunos não são separáveis da natureza das suas interacções com o meio. De facto, os comportamentos de dependência e associabilidade acima enumerados parecem-me decorrer, em parte, do tratamento infantil e de desresponsabilização dado aos alunos. Escolho apenas um exemplo, de peso: o controle docente para as eleições dos alunos para o Conselho de Representantes (órgão que confere aos alunos representação institucional) ou para o Conselho Pedagógico (órgão paritário). Cito o autor: “Um dos professores promotores chegou a confessar que o que lhe deu mais trabalho foi fazer a lista de discentes (!).” Parece, pois, haver um atropelo de papéis, um açambarcamento por parte dos professores, como se só a eles a escola pertencesse. E, ao mesmo tempo, parece existir um divórcio entre professor e alunos, justamente porque papéis e funções se confundem. Esse divórcio pode estar relacionado também com o alto grau de mediatização na escola, último traço por mim identificado, que passo a considerar em seguida.

1850. Um artista desenha com a ajuda de uma câmara escura.

Multimediatização

As interacções professor/alunos decorrem sobretudo em sala de aula, a que o autor chama “câmara escura”. Ficamos a saber que, apesar das ideias e engenho do arquitecto, a comunidade escolar não deixa entrar a luz solar na sala de aula e que professor e alunos, em presença real, não comunicam face a face e olhos nos olhos, mas sim através do ecrã de powerpoint (PP). O PP tornou-se, e cito, “suporte didáctico por excelência... (...)  cábula oficial e trabalhosa... (...) que leva mais tempo a montar que o tempo necessário para estudar a matéria... (...) causando hiatos, graças às atrapalhações técnicas...”. O autor conta que, numa só sessão de apresentação de trabalhos dos alunos em sala de aula, viu 180 diapositivos em PP, trinta por grupo.

A entrada da luz solar é barrada, mas não os telemóveis e a porta que eles abrem para vídeos, jogos, mensagens, tudo o que foi digitalizado, tudo o que é difundido. O seu uso parece ser livre, o que não acontece nas salas de teatro.

Eduardo Lourenço (2018) referiu “o circo romano a domicílio que a televisão universal nos oferece vinte e quatro horas por dia”. Esse circo romano invade e ocupa a escola superior.

Conclusão

Após a leitura do livro Pedagogia S. e a reflexão que me suscitou, fica-me, da escola descrita, uma impressão de ilusão, do que se nos afigura ser e não é.

Agradeço ao Luís Souta por me ter ajudado a disciplinar a memória.

Almada, 15 de Dezembro de 2019




12 setembro, 2019


Temas 2 e 3


“Hackers”, “crackers” e “whistleblowers”


José Manuel Catarino Soares


Clara Ferreira Alves (CFA, para abreviar) define-se como «uma sujeita que vende opiniões.» 

«Como toda a gente sabe, eu vendo opiniões. Há quem as dê, quem as registe, quem as tome como quem toma um remédio ou um elixir. Eu vendo» (CFA, Estado de Guerra, 2012). 

A opinião sobre J. Assange de uma sujeita e de um sujeito que vendem opiniões

Em 12 de Abril de 2019, CFA vendeu à SIC-Notícias a sua opinião sobre Julian Assange e sobre a sua prisão:

Assange começou por ser um hacker cotadíssimo, cometendo vários crimes enquanto hacker. Depois passou a ser guru de um movimento internacional, voltando a cometer mais crimes, até passar a ser o chefe dos trolls do sr. Putin e com uma manobra obviamente encomendada e paga por Moscovo, a divulgação dos mails da sra. Clinton, destruiu qualquer hipótese de ela ser eleita e elegeu o sr. Trump, que lhe deve estar grato,  porque esse factor, entre outros factores, foi fundamental para eleger Donald Trump. O sr. Assange, em minha opinião, hoje é um lunático que está convencido que é [???? palavras ininteligíveis]. Foi apanhado. Só tenho dúvidas que ele deva ser extraditado. Mas, enfim, as leis são para se cumprir.

Mas não é um dia negro para a liberdade? pergunta o moderador do programa Eixo do Mal.

É um dia negro, responde CFA, porque ele próprio [Assange] está a ver sair o fumo por debaixo da porta. Os Estados Unidos, seja quem for que esteja na Casa Branca, nunca desistem de ir atrás dos seus inimigos. Basta ver a história da Alcaida e do sr. Bin Laden. O sr. Assange vai dormir mal a partir de agora. Não vai ter a sorte de Chelsea Manning.

Ouçamos agora Paulo Portas (PP, para abreviar), um sujeito que também vende opiniões, como diria CFA, mas numa estação de televisão concorrente. Em 14 de Abril de 2019, PP disse o seguinte sobre Julian Assange na TVI:

Falemos com franqueza: este senhor é mais herói ou mais vilão? Eu nunca achei que ele fosse herói (…) Há uma coisa que me escapa: por que é que roubar uma loja é um crime e roubar documentos não é um crime e passa às vezes por ser uma proeza?  (…) Depois, como ele [Assange] é muito narcisista, transformou-se, como é normal nas pessoas muito narcisistas, num manipulador. Ele foi muito acolhido pela esquerda ocidental quando fez a divulgação de documentos do departamento de Estado e de segredos de Estado sobre a questão do Afeganistão e do Iraque, mas depois o feitiço virou-se contra o feiticeiro, porque ele é um dos principais responsáveis pelo desastre da campanha de Hillary Clinton. Ele fez sair 30.000 emails roubados ao Partido Democrata e eu diria o mesmo verbo, roubar, porque é isso que é, vamos lá ser claros, se acontecesse com o Partido Republicano. A acusação americana [que agora lhe é feita] é de conspiração para ser um hacker ou ajudar um hacker, e o que é mais curioso é que ele, que pretende ser um herói da liberdade de expressão no mundo inteiro, é hoje em dia, tal como Snowden, muito protegido. Por quem? Por Putin. Que cada um tire as lições que quiser…

Com certeza, vamos então a isso. Mas, primeiro que tudo, convém restabelecer os factos que CFA e PP omitem ou truncam.

Um rapto e um sequestro inéditos

Em 11 de Abril último, o australiano Julian Assange, fundador e director da WikiLeaks, foi arrebatado da Embaixada do Equador em Londres por agentes à paisana de uma polícia secreta britânica, sequestrado numa carrinha e levado para parte incerta sob o olhar complacente de alguns bobbies fardados. Assange vivia há 7 anos nessa embaixada, onde tinha sido acolhido como refugiado político em 19 de Junho de 2012, temendo ser deportado para a Suécia e, a partir desse país, ser entregue ao Departamento de Justiça e ao FBI americanos, que investigavam a WikiLeaks.

Inicialmente, as autoridades governamentais do Reino Unido afirmaram que o motivo deste rapto e sequestro seria o facto de Assange ter desobedecido, há 7 anos, às condições da sua fiança, quando, em vez de aguardar em prisão domiciliária a decisão de um tribunal britânico sobre um pedido de extradição feito pelas autoridades judiciais suecas, optou por entrar na embaixada equatoriana para receber asilo político. Porém, em Maio de 2017, as autoridades judiciais suecas arquivaram definitivamente o seu processo contra Assange e revogaram o pedido de extradição por terem reconhecido a inconsistência das queixas de teor sexual que lhes tinham dado origem. A justificação oficial britânica para o rapto e sequestro era, pois, patentemente falsa. Menos de uma hora depois, a Polícia Metropolitana de Londres emitiu um comunicado reconhecendo que Assange foi preso a pedido do governo americano, que fez um pedido de extradição para os Estados Unidos, onde ele é acusado de «conspirar para violar um computador ao ter concordado em quebrar a senha de um computador do governo americano

A acusação refere-se à revelação pela WikiLeaks, transmitida a 6 grandes jornais ‒ de Espanha (El País), França (Le Monde), Alemanha (Der Spiegel), Reino Unido (The Guardian), EUA (The New York Times) e México (La Jornada) ‒ de 250 mil telegramas do Departamento de Estado dos EUA, ocorrida em 2010. Chelsea Manning (na altura Bradley Manning), uma analista de informação do Exército dos EUA, foi acusada de ser a fonte da entrega dos documentos à WikiLeaks, assim como de documentos referentes às guerras do Iraque e do Afeganistão que atestam torturas e muitos crimes de guerra cometidos contra civis pelas tropas americanas, como o vídeo “Collateral Murder.” Por esta conduta, Manning foi condenada, num julgamento secreto, a 35 anos de prisão por um tribunal militar. Cumpriu 7 anos de prisão antes da sua pena lhe ter sido comutada pelo ex-presidente Obama. Saiu em liberdade em 17 de Janeiro de 2017, mas foi de novo presa em 8 de Março último e confinada a uma cela solitária por negar-se a testemunhar contra Assange no mesmo caso.

Os inimigos da liberdade de expressão e de informação só têm a força das armas do seu lado

As revelações que deram fama mundial à WikiLeaks, a Julian Assange e a Chelsea Manning, granjearam-lhes também, como se vê, poderosos inimigos, entre os quais, os governos dos EUA (desde 2007), os governos do Reino Unido (desde 2010) e o actual governo do Equador.

Assange sempre afirmou que temia ser extraditado para os EUA se fosse extraditado para a Suécia, razão pela qual pediu asilo político na embaixada do Equador. Foi acusado, por isso, de ser paranóico e de se dar ares de mártir da liberdade de expressão. A acusação e o pedido de extradição do governo Trump mostram, porém, que fez uma avaliação certeira dos perigos que o ameaçam. Se for extraditado para os EUA, arrisca-se a ser falsamente acusado de mais “crimes”, além daquele que lhe é imputado actualmente, à luz do Espionage Act de 1917, os quais lhe poderiam valer a prisão perpétua e, no pior dos casos, a pena de morte. Isso não impediu um juíz britânico, um tal Michael Snow, de declarar numa audiência preliminar com Assange que teve lugar uns dias depois do seu rapto e sequestro: «o comportamento do sr. Assange é o de um narcisista que não consegue ir além dos seus próprios interesses egoístas

O juíz Michael Snow talvez não saiba, por nunca ter lido o parecer nº 54/2015 do GTDA, mas comportamentos como o seu são um motivo de vergonha e embaraço para o escol da sua profissão, por ilustrarem bem a prepotência pseudolegal com que o governo, as polícias e os tribunais britânicos têm tratado Julian Assange nos últimos 9 anos.

O Grupo de Trabalho da ONU Contra Detenções Arbitrárias (GTDA, para abreviar) é constituído por eminentes especialistas em Direito Internacional de várias nacionalidades que são independentes de qualquer governo e que trabalham pro bono no âmbito do Conselho dos Direitos Humanos da ONU, sem receber qualquer salário.

Em Dezembro de 2015, o GTDA, divulgou o seu parecer nº 54/2015. Nele se reprova o comportamento dos governos da Suécia e do Reino Unido por violarem reiteradamente os artigos 7, 13, 14, 18, 19, 20 e 21 da Declaração Universal dos Direitos do Homem; os artigos 12, 18, 19, 21, 22, 25, 26 e 27 do Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos; o artigo 6 da Convenção para a Protecção dos Direitos Humanos e Liberdades fundamentais; e a Convenção das Nações Unidas relativa ao Estatuto dos Refugiados, ao condenarem Julian Assange a uma (i) detenção arbitrária, primeiro, em Dezembro de 2010, quando o mantiveram preso e isolado durante 10 dias, entre 7 e 10 de Dezembro de 2010; (ii) em seguida, quando o condenaram a prisão domiciliária durante 550 dias; (iii) e, finalmente, ao manterem uma vigilância apertada, durante anos a fio, em torno da embaixada londrina do Equador, com a ameaça constante de prender e extraditar Assange se este se atrevesse a pôr um pé fora dela. Esta actuação configura uma violação reiterada dos direitos de asilado político de Assange e uma privação arbitrária da sua liberdade, concluiu o GTDA. O parecer do GTDA foi enviado aos governos da Suécia e do Reino Unido em 22 de Janeiro de 2016.

O rapto de Assange dentro da embaixada ‒ dentro do território ‒ do Equador em Londres e o seu sequestro subsequente na prisão Belmarsh de alta segurança só foi possível com a colaboração empenhada do actual presidente do Equador, Lenin Moreno Garcés, actualmente a ser investigado pela Assembleia Nacional e pela procuradora geral do Equador pelo seu alegado envolvimento num escândalo de corrupção de grandes dimensões (Christian Zurita Ron e Fernando Villavicencio, “El laberinto offshore del circulo presidencial.” La Fuente, 19-02-2019). Moreno começou por revogar o asilo político de Assange que estava em vigor desde 2012. Pouco depois, o governo equatoriano também revogou a cidadania que havia sido concedida a Assange em 2017. A revogação ocorreu 5 dias antes de uma visita de Moreno a Washington por 6 dias e 15 dias antes de uma visita oficial que estava agendada do Relator da ONU sobre Tortura à embaixada do Equador em Londres para verificar as condições de saúde de Assange, que era mantido em isolamento dentro da embaixada pelo governo equatoriano há um ano, sem assistência médica, sem internet, sem comunicação e com visitas reduzidas.

Bangladesh, Abril de 2019. Um manifestante exibe um cartaz com uma modificação do primeiro verso do poema de Martin Niemöller. © Reuters, Mohammad Ponir Hossain.

O anterior presidente do Equador, Rafael Correa, cujo governo concedeu asilo político a Julian Assange, observou que Lenin Moreno, o seu ex-vice-presidente e o seu sucessor (a partir de 2017),

tentou, de todas as maneiras, que Assange saísse da embaixada, torturando-o física e psicologicamente, tentando quebrá-lo como ser humano. E agora permitiu que a polícia britânica entrasse na embaixada, o que é uma violação grosseira da soberania de um país. É algo absolutamente inédito na história mundial.

É legal que um país retire um asilo político já concedido?

Não, não, não, de maneira nenhuma. O princípio do asilo garante que o Estado que dá asilo não pode jamais entregar o asilado a quem o persegue. E além disso, para retirar uma cidadania, é preciso que haja uma investigação que prove que houve fraude. Assange cumpriu com todos os requisitos, reside há mais de 5 anos em território equatoriano – que é a embaixada. E vai contra decisões do Grupo [de Trabalho] das Nações Unidas contra Detenções Arbitrárias, e também contra toda a ética e contra a nossa Constituição. (Pública, Agência de Jornalismo Investigativo, 11-04-2019)

Em 21 de Dezembro de 2018, o GDTA já tinha emitido uma declaração onde afirmava:

É tempo do sr. Assange, que já pagou um alto preço por exercer pacificamente os seus direitos à liberdade de opinião, de expressão e de informação e por promover o direito à verdade no interesse do público, recupere a sua liberdade.

Bem dito. Examinemos então os epítetos com que CFA e PP mimosearam Assange. 

Metáforas gastas

Algumas metáforas hoje correntes foram de tal modo deformadas que já nada têm que ver com o seu significado original, mas sem que as pessoas que as empregam tenham consciência desse facto.

George Orwell, o autor desta frase, achava que o emprego dessas metáforas era um dos muitos ultrajes à língua inglesa que tornavam a moderna prosa inglesa feia, imprecisa e desleixada. Creio que ele aprovaria as palavras que escolhi como exemplos de metáforas gastas: hacker, cracker e whistleblower, que não existiam no seu tempo.

Whistleblowers são pessoas que, no seu posto de trabalho, se deparam com qualquer coisa que elas acreditam estar errada ou ser prejudicial e que, perante a indiferença ou a hostilidade reiterada dos seus superiores hierárquicos, contraposta à importância que dão ao caso, decidem levá-lo ao conhecimento do público, dentro ou fora (ou dentro e fora) da organização onde trabalham, correndo os riscos inerentes a esse gesto.

Pessoas dessa índole existem há muito tempo, mas só recentemente lhes foi dado esse nome em Inglês. A expressão whistle blowers foi usada com o significado banal que essas duas palavras veiculam (“apitos” ou “assobios” e “sopradores”) antes de se juntarem numa só e adquirirem o sentido figurado que agora têm. Esse salto semântico deve-se à ubiquidade de “assobiar” ou “apitar” no mundo anglófono. Diz-se dos falcoeiros que eles whistle down the wind quando deixam os seus falcões amestrados voar livremente à procura de uma presa. Diz-se dos marinheiros à cata de um vento que tire o seu veleiro da imobilidade forçada que eles bem gostariam de chamar com um simples assobio, whistle for it. E há muitas outras expressões com “assobios” e “apitos”:  as clean as a whistle, dog-whistle politics, whistle in a graveyard, etc. Os antepassados próximos dos whistleblowers contemporâneos foram os agentes da polícia inglesa que sopravam (e sopram) com toda força nos seus apitos para dar o alerta sobre qualquer coisa que acreditem constituir um sério motivo de preocupação

Hackers são pessoas que têm uma habilidade especial para construir coisas novas a partir de coisas velhas, desmontando-as e tornando-as a montar de uma forma inovadora, ou para descobrir defeitos e virtudes ocultas em máquinas e maquinetas de toda a espécie. Incluem-se neste conceito, a partir dos anos 1960, as pessoas que concebem, elaboram  e modificam programas informáticos, computadores e redes de computadores, quer desenvolvendo funcionalidades novas, quer adaptando as antigas a novos usos.

Os hackers foram responsáveis por muitas inovações na informática, incluindo a linguagem de programação C (Dennis Ritchie), o sistema operacional Unix (Dennis Ritchie, Ken Thompson), o editor de texto emacs e a licença de uso livre de software GNU (Richard Stallman), o sistema GNU/Linux (Linus Torvalds), o motor de busca/indexador Google (Larry Page e Sergey Brin), os sistemas de criptografia de chave pública (como o RSA de Ron Rivest, Adi Shamir e Leonard Hadleman). Os hackers também revelaram muitas fragilidades em sistemas de criptografia e segurança em eleições por voto digital (Rop Gonggrijp), em cartões de cidadão com microprocessador incorporado, nos discos Blue-Ray, no bloqueio de telemóveis, etc.

Não há espaço para documentar aqui o caminho tortuoso que levou do verbo hack (cortar com um cutelo, um facão ou um machado) ao nome substantivo hacker1 (talhador, cortador) e ao nome substantivo hacker2 (no sentido figurado descrito mais acima). O que é importante sublinhar é que os hackers não são malfeitores. Para isso, existe outro termo, cracker, proposto pelos próprios hackers.

Como devemos então traduzir estas metáforas que perderam quase todo o (escasso) poder evocativo e que são usadas, na língua original, por pessoas como Paulo Portas e Clara Ferreira Alves apenas porque lhes permitem exibir um conhecimento fictício do Inglês, amalgamarem conceitos distintos, caluniarem pessoas que detestam e confundirem o público nas suas charlas televisivas? Sugiro alertador, como em Espanhol, ou lançador de alertas em Francês (lanceur d’alertes) ou divulgador de revelações de interesse público para whistleblower; engenhocas informático para hacker, e arrombador informático, vândalo informático e gatuno informático (conforme o caso) para cracker.

É fácil rebater os caluniadores

Julian Assange não é um herói nem um vilão. É um engenhocas informático que se tornou um jornalista divulgador de revelações de interesse público quando criou a WikiLeaks em 2006. A WikiLeaks não é um movimento internacional de arrombadores, vândalos e gatunos informáticos. É uma gigantesca biblioteca virtual dos documentos (mais de 10 milhões) mais perseguidos do mundo. «Damos asilo a esses documentos, analisamo-los, publicitamo-los e arranjamos mais» (J.Assange, entrevista, Spiegel On Line, 20-07-2015). Pela sua meritória actividade, J. Assange e a WikiLeaks já ganharam os seguintes prémios de jornalismo:

   Economist New Media Award (2008)
   Amnesty New Media Award (2009)
  TIME Magazine Person of the Year, People’s Choice (highest global vote) (2010)
  Sam Adams Award for Integrity (2010)
  National Union of Journalists Journalist of the Year (2011)
   Sydney Peace Foundation Gold Medal (2011)
  Martha Gellhorn Prize for Journalism (2011)
  Blanquerna Award for Best Communicator (2011)
  Walkley Award for Most Outstanding Contribution to Journalism (2011)
  Voltaire Award for Free Speech (2011)
  International Piero Passetti Journalism Prize of the National Union of Italian    Journalists (2011)
  Jose Couso Press Freedom Award (2011)
  Privacy International Hero of Privacy (2012)
  Global Exchange Human Rights People’s Choice Award (2013)
  Yoko Ono Lennon Courage Award for the Arts (2013)
  Brazillian Press Association Human Rights Award (2013)
  Kazakstan Union of Journalists Top Prize (2014)
GUE/NGL Award for Journalists, Whistleblowers and Defenders of the Right to Information (2019)

assim como uma nomeação para o United Nations Mandela Prize (2015) e nomeações em cinco anos consecutivos (2011-2016) para o Prémio Nobel da Paz.

Este não é o currículo de um “lunático”, de um “narcisista”, de um “guru” ou de um “ladrão de documentos”, como afirmam caluniosamente CFA e PP. Assange não ganhou estes prémios por “roubar documentos” (como afirma PP), ou por “cometer crimes” como hacker (como afirma CFA). Ganhou-os por divulgar publicamente revelações, nunca desmentidas, sobre toda a espécie de crimes e abusos de poder cometidos por gente tão poderosa quanto pérfida.

As revelações que a WikiLeaks fez sobre a actuação de Hillary Clinton em 2016 e 2018 são um bom exemplo. Ficámos a saber que esta senhora (i) trabalhou para influenciar  as primárias do partido republicano de modo a favorecer a nomeação de Donald Trump (que ela considerava ser o candidato republicano mais fácil de derrotar); (ii)  torpedeou a campanha de Bernie Sanders, seu rival no partido democrata; (iii) fez discursos em privado aos banqueiros de Wall Street, prometendo-lhe zelar pelos seus interesses se fosse eleita; (iv) aceitou milhões de dólares como donativo das monarquias do Catar e da Arábia Saudita à sua fundação, sabendo que são dos maiores financiadoras do jihadismo e, em particular, do chamado Estado Islâmico; (v) autorizou  a maior venda de armas de sempre ao regime totalitário da Arábia Saudita (80.000 milhões de dólares), armas que estão a ser usadas na guerra contra o Iémen (que já fez mais de 60.000 mortos e provocou uma crise humanitária); (vi) conseguiu convencer os seus colegas de governo e, sobretudo, o seu chefe (Barak Obama) a bombardear a Líbia e a destruir o regime de Kadafhi (o que deixou a Líbia num caos e fez cerca de 40.000 mortos) por estar convencida que isso ajudaria a estabelecer a sua reputação como futura candidata à presidência dos EUA.

Que CFA e PP lamentem que estas revelações tenham vindo a público fala por si. E não surpreende, por isso, que ambos escondam que a WikiLeaks já publicou mais de 660.000 ficheiros secretos sobre a Rússia, incluindo o Kremlin e Putin, revelando mais sobre as maquinações do poder de Estado nesse país do que toda a imprensa anglo-americana.

É toda a diferença que separa o jornalismo parceiro da verdade e do escrutínio, do jornalismo parceiro da mentira e da censura, aquele género de jornalismo que o australiano John Pilger, uma lenda viva do jornalismo, apodou de jornalismo Vichy — uma alcunha alusiva ao regime do marechal Pétain que governou uma parte da França, durante a 2ª guerra mundial, com a protecção dos exércitos de ocupação da Alemanha nazi.

...................................................................................................................................

N.B. Este texto foi originalmente publicado (com algumas modificações alheias à vontade do autor) em A Página da Educação, série II nº 213, 2019. 

14 abril, 2019

TEMA 2

Julian Assange corre perigo

                       

José Manuel Catarino Soares


Fico contente por ter a oportunidade e o privilégio de dar eco, reproduzindo-o neste blogue, a um texto de cariz orwelliano do jornalista John Pilger, uma lenda viva do jornalismo contemporâneo. O texto de Pilger  (O prisioneiro diz não ao Irmão Mais Velho, na minha tradução) foi escrito há pouco mais de um mês em defesa de Julian Assange, seu compatriota, colega de profissão e fundador-editor da Wikileaks.


O governo dos EUA quer castigar Julian Assange por este jornalista ter divulgado muitos crimes praticados por políticos corruptos, pelas forças militares e pelos serviços secretos desse país. Pretende extraditá-lo do Reino Unido, para o poder encarcerar e amordaçar até ao fim dos seus dianuma prisão americana de alta segurança, ou, se possível for, condená-lo à morte.

O texto de Pilger não só conserva toda a sua actualidade, como ganhou também uma nova acuidade com o recente e brutal ataque combinado de três governos (o governo do Equador, o governo dos EUA e o governo do Reino Unido) contra a liberdade e a segurança de Julian Assange, e, através dele, contra a liberdade de expressão e a liberdade de imprensa de todos nós, cidadãos — um ataque que beneficiou do silêncio cúmplice do governo do seu país natal: o governo australiano.

Julian Assange foi expulso da Embaixada do Equador em Londres no passado dia 11 de Abril de 2019, onde tinha vivido nos últimos 7 anos como refugiado político, e arrastado à força para uma carrinha por agentes da polícia à paisana (de que polícia[s] não sabemos) do Reino Unido. Está actualmente preso nos calabouços da Polícia Metropolitana de Londres, onde enfrenta um pedido de extradição feito pelos EUA, que o acusam falsamente de crimes que podem valer-lhe a prisão perpétua ou até, no pior dos casos, a pena de morte. 

Os seus direitos de refugiado político foram brutalmente espezinhados pelos governos do Equador e do Reino Unido. A recuperação da sua liberdade, a sua segurança e a sua própria vida estão em grande perigo, se não criarmos uma poderosa corrente internacional de solidariedade para o proteger. Voltarei a este assunto, nas páginas deste blogue, tão breve quanto possível, para o demonstrar.

De imediato, convém que todos saibam quem é, de facto, Julian Assange, para que cada um(a) saiba combater a maciça campanha de difamação que já começou a ser feita contra ele, para o desacreditar e isolar aos olhos da opinião pública. O texto de John Pilger (embora só acessível a quem conheça o idioma inglês) é um bom começo para conseguirmos criar esse contra-movimento libertador.  Outro passo, mais simples e imediato, é subscrever a petição que se encontra aqui (pressione neste link Não extraditem o Julian Assange !).
.........................................................................................................................................
THE PRISONER SAYS NO TO BIG BROTHER
 John Pilger

4 March 2019
       Imagem © George Burchett 2019

John Pilger, que é australiano,  invoca George Orwell ao apelar os seus compatriotas a mobilizarem-se pela liberdade «de um distinto Australiano, o fundador e editor da WikiLeaks, Julian Assange», e por «um jornalismo genuíno de uma espécie que agora é considerada exótica». O Irmão Mais Velho [Big Brother] é a misteriosa personagem do romance 1984 de George Orwell que encarna o poder de Estado na sua máxima potência e a quem todos devem total e acéfala obediência. 

**********************************************************************

Whenever I visit Julian Assange [na embaixada do Equador em Londres], we meet in a room he knows too well. There is a bare table and pictures of Ecuador on the walls. There is a bookcase where the books never change. The curtains are always drawn and there is no natural light. The air is still and fetid.

This is Room 101.

Before I enter Room 101, I must surrender my passport and phone. My pockets and possessions are examined. The food I bring is inspected.

The man who guards Room 101 sits in what looks like an old-fashioned telephone box. He watches a screen, watching Julian. There are others unseen, agents of the state, watching and listening.

Cameras are everywhere in Room 101. To avoid them, Julian manoeuvres us both into a corner, side by side, flat up against the wall. This is how we catch up: whispering and writing to each other on a notepad, which he shields from the cameras. Sometimes we laugh.

I have my designated time slot. When that expires, the door in Room 101 bursts open and the guard says, «Time is up!» On New Year’s Eve, I was allowed an extra 30 minutes and the man in the phone box wished me a happy new year, but not Julian.


John Pilger em 2017


Of course, Room 101 is the room in George Orwell’s prophetic novel, 1984, where the thought police watched and tormented their prisoners, and worse, until people surrendered their humanity and principles and obeyed Big Brother.

Julian Assange will never obey Big Brother. His resilience and courage are astonishing, even though his physical health struggles to keep up.

Julian is a distinguished Australian, who has changed the way many people think about duplicitous governments. For this, he is a political refugee subjected to what the United Nations calls «arbitrary detention».

The UN says he has the right of free passage to freedom, but this is denied. He has the right to medical treatment without fear of arrest, but this is denied. He has the right to compensation, but this is denied.

As founder and editor of WikiLeaks, his crime has been to make sense of dark times. WikiLeaks has an impeccable record of accuracy and authenticity which no newspaper, no TV channel, no radio station, no BBC, no New York Times, no Washington Post, no Guardian can equal. Indeed, it shames them.

That explains why he is being punished.

For example:

Last week, the International Court of Justice ruled that the British Government had no legal powers over the Chagos Islanders, who in the 1960s and 70s, were expelled in secret from their homeland on Diego Garcia in the Indian Ocean and sent into exile and poverty. Countless children died, many of them, from sadness. It was an epic crime few knew about.

For almost 50 years, the British have denied the islanders’ the right to return to their homeland, which they had given to the Americans for a major military base.

In 2009, the British Foreign Office concocted a «marine reserve» around the Chagos archipelago.

This touching concern for the environment was exposed as a fraud when WikiLeaks published a secret cable from the British Government reassuring the Americans that «the former inhabitants would find it difficult, if not impossible, to pursue their claim for resettlement on the islands if the entire Chagos Archipelago were a marine reserve

The truth of the conspiracy clearly influenced the momentous decision of the International Court of Justice.

WikiLeaks has also revealed how the United States spies on its allies; how the CIA can watch you through your iPhone; how Presidential candidate Hillary Clinton took vast sums of money from Wall Street for secret speeches that reassured the bankers that if she was elected, she would be their friend.

In 2016, WikiLeaks revealed a direct connection between [Hillary] Clinton and organised jihadism in the Middle East: terrorists, in other words. One email disclosed that when [Hillary] Clinton was US Secretary of State, she knew that Saudi Arabia and Qatar were funding Islamic State, yet she accepted huge donations for her foundation from both governments.

She then approved the world’s biggest ever arms sale to her Saudi benefactors: arms that are currently being used against the stricken people of Yemen.

That explains why he is being punished.

WikiLeaks has also published more than 800,000 secret files from Russia, including the Kremlin, telling us more about the machinations of power in that country than the specious hysterics of the Russiagate pantomime in Washington.

This is real journalism journalism of a kind now considered exotic: the antithesis of Vichy journalism, which speaks for the enemy of the people and takes its sobriquet from the Vichy government that occupied France on behalf of the Nazis.

Vichy journalism is censorship by omission, such as the untold scandal of the collusion between Australian governments and the United States to deny Julian Assange his rights as an Australian citizen and to silence him.

In 2010, Prime Minister Julia Gillard went as far as ordering the Australian Federal Police to investigate and hopefully prosecute Assange and WikiLeaks — until she was informed by the AFP that no crime had been committed.

Last weekend, the Sydney Morning Herald published a lavish supplement promoting a celebration of “Me Too” at the Sydney Opera House on 10 March. Among the leading participants is the recently retired Minister of Foreign Affairs, Julie Bishop.

Bishop has been on show in the local media lately, lauded as a loss to politics: an “icon”, someone called her, to be admired.

The elevation to celebrity feminism of one so politically primitive as Bishop tells us how much so-called identity politics have subverted an essential, objective truth: that what matters, above all, is not your gender but the class you serve.

Before she entered politics, Julie Bishop was a lawyer who served the notorious asbestos miner James Hardie which fought claims by men and their families dying horribly with asbestosis.

Lawyer Peter Gordon recalls Bishop «rhetorically asking the court why workers should be entitled to jump court queues just because they were dying

Bishop says she «acted on instructions... professionally and ethically.»

Perhaps she was merely “acting on instructions” when she flew to London and Washington last year with her ministerial chief of staff, who had indicated that the Australian Foreign Minister would raise Julian's case and hopefully begin the diplomatic process of bringing him home.

Julian’s father had written a moving letter to the then Prime Minister Malcolm Turnbull, asking the government to intervene diplomatically to free his son. He told Turnbull that he was worried Julian might not leave the embassy alive.

Julie Bishop had every opportunity in the UK and the US to present a diplomatic solution that would bring Julian home. But this required the courage of one proud to represent a sovereign, independent state, not a vassal.

Instead, she made no attempt to contradict the British Foreign Secretary, Jeremy Hunt, when he said outrageously that Julian «faced serious charges». What charges? There were no charges.

Australia’s Foreign Minister abandoned her duty to speak up for an Australian citizen, prosecuted with nothing, charged with nothing, guilty of nothing.

Will those feminists who fawn over this false icon at the Opera House next Sunday be reminded of her role in colluding with foreign forces to punish an Australian journalist, one whose work has revealed that rapacious militarism has smashed the lives of millions of ordinary women in many countries: in Iraq alone, the US-led invasion of that country, in which Australia participated, left 700,000 widows.

So what can be done? An Australian government that was prepared to act in response to a public campaign to rescue the refugee football player, Hakeem al-Araibi, from torture and persecution in Bahrain, is capable of bringing Julian Assange home.

Yet the refusal by the Department of Foreign Affairs in Canberra to honour the United Nations' declaration that Julian is the victim of «arbitrary detention» and has a fundamental right to his freedom is a shameful breach of the spirit of international law.

Why has the Australian government made no serious attempt to free Assange? Why did Julie Bishop bow to the wishes of two foreign powers? Why is this democracy traduced by its servile relationships, and integrated with lawless foreign power?

The persecution of Julian Assange is the conquest of us all: of our independence, our self respect, our intellect, our compassion, our politics, our culture.

So stop scrolling. Organise. Occupy. Insist. Persist. Make a noise. Take direct action. Be brave and stay brave. Defy the thought police.

War is not peace, freedom is not slavery, ignorance is not strength. If Julian can stand up to Big Brother, so can you: so can all of us.
………………………………………………………………………………..................
John Pilger fez este discurso num encontro ao ar livre em prol de Julian Assange, realizado  em Sydney, na Austrália, e organizado pelo Socialist Equality Party.  John Pilger pode ser lido no twitter @johnpilger e no seu blogue  http://johnpilger.com.
.............................................................................................................

Foto de Peter Rae/EPA. Uma das muitas manifestações de protesto contra a prisão de Julian Assange que se realizaram em várias cidades do mundo.


P.S. (17-04-2019)

Campanha Escreva a Julien Assange (Write to Julian Assange 
 https://writejulian.com)

Julian Assange está actualmente nos calabouços de uma prisão de Londres de sua Majestade Britânica.
Por favor, escreva-lhe uma carta com uma CURTA mensagem pessoal, dando-lhe ânimo para que possa resistir às provações que enfrenta e informe-o, se for caso disso, do que você fez em prol da sua não-extradição e libertação.
Não se esqueça de pôr o seu nome e morada no remetente. O destinatário é o seguinte:

Mr. Julian Assange
DOB: 3/07/1971 HMP Belmarsh
Western Way
London SE28 0EB
UK

Vamos submergir a prisão de Belmarsh com cartas de apoio a Julian Assange!