Neste blogue discutiremos 5 temas: 1. A segurança social. 2. A linguagem enganosa. 3. As estruturas e os processos de desumanização criados pelas oligocracias contra a democracia. 4. A economia política (e.g. Petty, Smith, Ricardo, Sismondi), remodelada e crismada (no fim do século XIX) de "economia matemática", a qual teria o direito de se proclamar "ciência económica" (Ingl. economics) — um direito que não lhe será reconhecido aqui. 5. A literatura imaginativa (prosa e poesia).

07 agosto, 2021

 (Temas 2, 3 e 4)


“Esquerda” e “Direita” trocadas por miúdos

do ponto de vista da democracia (3ª parte) —

A igualdade em relação ao poder político

José Catarino Soares


9. A igualdade em relação ao poder explícito

A democracia afirmei no último parágrafo da 2ª parte deste ensaio não consegue assegurar a igualdade (a identidade contingente) entre os seres humanos em âmbitos muito numerosos e diversos, porque não há nem pode haver igualdade nesses âmbitos.

É possível, porém, instituir a igualdade (a identidade contingente) entre os cidadãos relativamente às duas vertentes do poder explícito: a vertente política e a vertente económica. A razão é simples, embora seja raramente ou nunca enunciada (o leitor encarregar-se-á, se quiser, de descobrir a razão desta omissão). 

O poder político – o poder executivo (ou governativo), o poder legislativo e o poder jurisdicional – pertence ao âmbito das entidades participáveis. Por isso, é possível realizar a igualdade de todos os cidadãos em relação ao poder político. Basta, para tanto, que tal igualdade seja entendida como identidade contingente à participação no poder governativo, no poder legislativo e no poder jurisdicional.

O poder económico – a propriedade e a posse (i.e., o controlo efectivo) dos meios industriais de produção (incluindo as terras de agricultura e de silvicultura e as minas) de bens e serviços pertence ao âmbito das entidades compartilháveis, mutualizáveis. Por isso, é possível realizar a igualdade de todos os cidadãos em relação ao poder económico. Basta, para tanto, que tal igualdade seja entendida como identidade contingente ao compartilhamento, à mutualização dos meios industriais de produção [23].

Vejamos então, mais de perto, em que consiste a igualdade em relação a cada uma das duas vertentes do poder explícito.

10. A igualdade em relação ao poder político

Os Atenienses dos séculos V e IV a.C. mostraram-nos concretamente como proceder para realizar a igualdade de todos os cidadãos relativamente ao poder político. Deram-lhe o nome de isonomia.

10.1. Isonomia/anisonomia

Isonomia (Gr. íσονομία/isonomia, íσος/isos, “igual”, mas também, “justo” + νόμος/nomos; “lei”, “convenção”, “instituição”, proveniente de νέμω/nemô, “compartilhar”, “distribuir”) é um termo criado e usado pelos gregos do século VI a.C. em domínios tão díspares como a cosmologia, a medicina, a arquitectura e a reforma agrária [24]. Como já foi dito, o termo foi depois usado pelos democratas atenienses dos séculos V e IV a.C. para denominar a igualdade política dos cidadãos.

É frequente lermos e ouvirmos a afirmação segundo a qual a isonomia significava, para os Atenienses dessa época, a igualdade de todos os cidadãos perante a lei, e/ou leis iguais para todo o tipo de cidadãos (ricos e pobres, por exemplo), e/ou o  primado da lei relativamente aos caprichos dos indivíduos e às injunções de monarcas, tiranos ou oligarcas — aforismos tidos como sendo mais ou menos equivalentes e apresentados como sendo a tradução prática, trocada por miúdos, do que se designa actualmente como Estado de direito (Ingl. rule of law; Fr. État de droit, Al. Rechtsstaat). Esta é, por exemplo, a interpretação de Friedrich Hayek no seu tratado The Constitution of Liberty [“A Constituição da Liberdade”] [25], o livro de cabeceira de Margaret Tatcher, Ronald Reagan, Georges H.W. Bush e outros expoentes do chamado “neoliberalismo[26].

1984Margaret Tatcher (1925-2013), chefe do Partido Conservador (1975-1990), primeira-ministra do Reino Unido (1979-1990), e Friedrich Hayek (1899-1992), economista e filósofo. Hayek exibe a medalha da Ordem dos Companheiros de Honra (Order of the Companions of Honor) que a Rainha Isabel II lhe atribuiu por proposta de Tatcher. Durante uma visita que Tatcher fez ao Departamento de Investigação Conservadora, um centro de estudos do seu partido, no Verão de 1975, um orador do seu partido tinha preparado uma comunicação explicando por que é que uma “política de centro”, que evitasse os extremos da esquerda e da direita, era o caminho mais seguro para o Partido Conservador chegar ao poder. Antes de ele terminar a sua intervenção, Tatcher abriu a sua mala de mão e tirou de lá um livro que exibiu de braço no ar para toda a gente ver. Era A Constituição da Liberdade de F. Hayek, «Isto», exclamou a senhora Tatcher peremptoriamente, «é aquilo em que nós acreditamos!» e pespegou o livro com estardalhaço em cima da mesa [27] .

Mas essa interpretação é muito deficiente e potencialmente enganadora. Sim, é verdade que, para os Atenienses dos séculos V e IV a.C., isonomia significava o princípio da igualdade política. Todavia, a igualdade política em causa na isonomia não se confundia com o primado da lei sobre os caprichos dos indivíduos, a que os atenienses chamavam eunomia [28]. A eunomia, como veremos, é uma consequência da isonomia. A isonomia não era também apenas, nem principalmente, a igualdade dos cidadãos perante a aplicação da lei, mas o igual direito de todos os cidadãos exercerem as suas prerrogativas de cidadãos na feitura das leis, e, por conseguinte, o igual direito de todos os cidadãos ao exercício de todas as magistraturas em todos os ramos do poder político — governativo, legislativo e jurisdicional [29].

1983Ronald Reagan, presidente dos EUA, aperta a mão a Friedrich Hayek. Hayek foi considerado o inspirador da política neoliberal do presidente Reagan e o guru dos seus principais mentores no seu governo presidencial (1981-1989): Martin Anderson, o principal conselheiro de Reagan para a política interna, e Paul Craig Roberts, secretário de Estado adjunto do Tesouro, seu principal conselheiro para a política económica.

Por outras palavras, a isonomia era o igual direito de todos os cidadãos atenienses  participarem e a igual probabilidade de todos os cidadãos atenienses serem chamados a participar nas instituições do poder político (legislativo, jurisdicional e executivo), como magistrados; o igual direito de decidirem e a igual probabilidade de serem chamados a decidir soberanamente o teor das leis pelas quais queriam reger-se colectivamente em conformidade com o princípio da eunomia [o primado da lei sobre os caprichos individuais]; o igual direito de decidirem e a igual probabilidade de serem chamados a decidir soberanamente as alterações às leis e às instituições anteriormente estabelecidas; o igual direito de se ocuparem e a igual probabilidade de serem chamados a ocuparem-se efectivamente, no dia-a-dia, de todos os assuntos do domínio público (i.e., o domínio da polis [30]).

No caso da Atenas democrática dos séculos V e IV a.C., o número e a diversidade de cargos/funções que um cidadão era chamado a desempenhar eram muito grandes. Os nomes respectivos desses cargos/funções eram também numerosos: archai, ephetai (éfetas), bouleutai (bouleutas), nomothetai (nomótetas), prytaneis (pritanos), logistái, politái, etc. Porém, para simplificar, podemos reparti-los grosso modo em quatro categorias: membros de um júri no Tribunal do Povo (no caso do poder jurisdicional), membros do Conselho dos Quinhentos (no caso do poder governativo), membros de um conselho ou comissão de jurisconsultos (no caso do poder legislativo), membros de uma comissão ou de um colégio de administradores (no caso da dimensão executiva-administrativa das decisões dos três poderes explícitos).

Por facilidade de expressão, empregarei o termo magistrado como denominação genérica de todos esses cargos e, por extensão, de todo e qualquer cargo político ou função política que um cidadão possa exercer temporariamente numa sociedade democrática.  A isonomia era assegurada pelo método principal de escolha dos magistrados: a tiragem à sorte.

[Na polis ateniense] [t]odos os cargos políticos [entenda-se, todos os cargos de magistrado] são atribuídos por sorteio; e os incumbidos têm de prestar contas pelo que fazem durante o seu mandato, e a assembleia geral [de todos os cidadãos, a Eclésia] arbitra em todos os conselhos (Heródoto, III, 80 [31]).

A afirmação de Heródoto não é exacta. Não eram todos, mas antes a grande maioria dos magistrados atenienses que eram escolhidos por sorteio. A excepção eram as magistraturas que exigiam uma competência técnica específica e que constituíam uma pequena minoria relativa. Nesses casos, a selecção era feita por eleição e não por sorteio.

Era o caso dos comandantes militares – os 10 stratégoi [estrategas] ou seja, generais; os 10 taxiarchoi [taxiarcas], oficiais de infantaria comandantes de regimentos; os 10 phyliarchoi [filiarcas], oficiais de cavalaria comandantes de esquadrão, e o kosmétés [prefeito encarregado do treino militar dos efebos] – dos 10 tesoureiros (helénotamiai) dos tributos federais da Liga de Delos (478-404 a.C.), dos embaixadores (não havia embaixadores permanentes, eram todo encarregados de missões diplomáticas específicas), e do superintendente das fontes, encarregado do abastecimento de água à cidade (épimilétés tons crépon), função que seria desempenhada hoje em dia por um engenheiro sanitário e ambiental. Todos estes magistrados eram eleitos anualmente pela Assembleia do Povo (Ekklésia) onde tinham assento todos os cidadãos.

Mas é preciso acrescentar que a citação de Heródoto faz parte de uma explicação das diferenças mais marcantes entre tirania, oligarquia e democracia. E não há qualquer dúvida que a diferença mais marcante entre a democracia e as outras formas de instituição do poder político é a isonomia, tal como se traduz nomeadamente na igualdade dos cidadãos perante a lei, na igual participação dos cidadãos nas magistraturas por sorteio e rotação dos cargos e na obrigatoriedade dos magistrados prestarem contas (no plano financeiro, moral e político) pelos seus actos no termo dos seus mandatos.

Estela grega representando o povo a ser coroado pela democracia,
cerca de 336 a.C.
A igualdade dos cidadãos perante a lei é, sem dúvida, um aspecto importante da isonomia, da igualdade política. Mas é um aspecto relativamente menor, um corolário da igualdade política que não precisava sequer de ser invocado e encarecido na Atenas dos séculos V e IV a.C., uma vez que era óbvio e tido como ponto assente pelos atenienses: como poderiam os cidadãos não serem iguais perante a lei, se a dita lei era o resultado de um processo de elaboração e aprovação em que todos os cidadãos tinham (tido) igual direito de participação?

A eunomia, o primado da lei, é também, sem dúvida, um aspecto importante da isonomia, da igualdade política dos cidadãos em todos os planos. Mas é uma consequência dela, uma vez que, se queremos ser cidadãos livres, só devemos sujeitar-nos a leis correctamente feitas (como dizia Aristóteles, cf. nota [30]), e tais leis só poderão ser feitas correctamente com a participação, em pé de igualdade, de todos os cidadãos. 

A anisonomia (Gr. αν-/an-, “des-” [prefixo de negação/privação] + íσος/isos, “igual” + νόμος/nomos, “lei” + isos + nomos) é o dual da isonomia. Significa a desigualdade política, o desigual direito dos cidadãos de exercerem e a desigual probabilidade de serem chamados a exercer todas as suas prerrogativas de cidadãos na feitura e na aplicação das leis, e, por conseguinte, o desigual direito e a desigual probabilidade dos cidadãos na participação (no acesso e no exercício de todas as magistraturas em todos os ramos do poder político — governativo, legislativo e jurisdicional.

Na Atenas democrática dos séculos V e IV a.C., a anisonomia existia na prática relativamente às mulheres atenienses (como veremos na 4ª parte deste ensaio, secção 11), mas não era reconhecida conceptualmente nem na linguagem. O termo anisonomia é, salvo melhor informação, uma criação moderna, assim como o emprego que dele faço aqui como sinónimo de desigualdade política [32].

10.2. Isegoria, isopsefia e isocracia

Para falar de igualdade política, os Atenienses da época democrática tinham vários termos, além de isonomia, todos compostos também com o prefixo iso-: isegoria (igualdade no uso da palavra na assembleia geral do povo e em todos os conselhos, colégios e comissões de magistrados), isopsefia (todos os votos individuais têm o mesmo valor, não há votos de qualidade), isocracia (igualdade de acesso a todas as magistraturas) e isogonia (igualdade pelo nascimento).

Para os propósitos deste ensaio, podemos considerar a isegoria, a isopsefia e a isocracia como sendo três aspectos particulares e indispensáveis da isonomia. Resta a isogonia, que suscita um problema muito antigo e muito controverso: os seres humanos nascem iguais? Sim? Então, são iguais em quê? São iguais até que ponto?

10.3. Isogonia

Um bom ponto de partida para a discussão é o parágrafo introdutório da Declaração dos treze Estados unidos da América (1776), mais conhecida como Declaração de Independência dos Estados-Unidos da América:

Consideramos estas verdades evidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que entre eles estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade.

Como se constata, para os autores desta Declaração, os direitos inalienáveis dos seres humanos são uma consequência da igualdade pelo nascimento (isogonia), mas tanto a isogonia como os direitos inalienáveis que dela resultam são atribuídos a uma mesma fonte, que é descrita como uma entidade extra-social, extra-humana, todo-poderosa: o “Criador.”

Um grande passo em frente, filosoficamente falando, foi dado 13 anos depois, em França, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), cujo artigo primeiro reza assim:

Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções sociais só podem ser fundamentadas com base na utilidade pública.

Representação alegórica da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. À esquerda, a França, segurando nas mãos as correntes quebradas da tirania. À direita, o génio da nação com o ceptro do poder na mão direita a apontar para um triângulo luminoso com o olho supremo da razão no centro (uma iconografia maçónica). Estas duas figuras femininas rodeiam o preâmbulo e os 17 artigos da declaração. Estes últimos tomam a aparência e a solenidade religiosa das Tábuas da Lei que Moisés trouxe do monte Sinai (ou do monte Horebe), separados por um feixe de lictor romano (símbolo da união e da força), coroadas por um barrete frígio (símbolo da liberdade) e por uma serpente a morder a cauda (símbolo da eternidade) e ornados com folhas de louro (símbolo da glória). Esta tela a óleo foi pintada por Jean-Jacques-François Le Barbier, 1789. Encontra-se no Museu Carnavalet, em Paris.

Desapareceu o “Criador” que os independentistas americanos invocavam como magnânimo doador da igualdade, da liberdade e dos demais direitos inalienáveis dos seres humanos. Agora, o nascimento dos seres humanos é encarado como um facto tão natural – e tão cheio ou isento de mistério – como o nascimento de qualquer outro animal. Por outro lado, o sintagma preposicional “[livres e iguais] em direitos” não deixa qualquer dúvida: ele mostra que os deputados constituintes franceses de 1789 atribuíam à liberdade e à igualdade entre os seres humanos um conteúdo normativo, não um conteúdo descritivo. A sua posição neste particular é exactamente a mesma que Abraham Lincoln, presidente dos EUA, assumirá mais de meio século mais tarde, no seu discurso de Springfield em 1857, quando comentou:

Os autores deste nobre utensílio [Lincoln refere-se à Declaração de Independência de 1776, N.E] não tencionavam declarar os homens iguais em todos os pontos.

Cerca de 2.200 anos antes, já Aristóteles (384-322 a.C.) tinha formulado, no livro V do seu tratado sobre A Política, uma posição semelhante que não era só a sua, mas dos Atenienses seus contemporâneos e antepassados próximos.

A democracia surgiu de as pessoas imaginarem que, se são iguais num aspecto qualquer, são também absolutamente iguais (porque supõem que, por serem todas igualmente livres, são todas absolutamente iguais); e, por conseguinte, os democratas, ao considerarem-se iguais, pretendem participar em tudo [o que diz respeito ao poder político] em pé de igualdade [33].

O ponto a reter nesta citação é o da compreensão clara de que a isogonia não tem uma fonte extra-social ou extra-humana, não é um “dado” da biosfera. É, isso sim, um produto da imaginação humana criadora de significado no campo social-histórico, uma ideia reguladora sociohistoricamente contingente — Cornelius Castoriadis diria: uma criação do imaginário social instituinte, uma significação imaginária social, respectivamente [34]. E o mesmo se aplica a todas as outras declinações da isonomia (igualdade política) – isogoria, isopsefia, isocracia – e também, claro, à liberdade (autonomia) de que falaremos em mais pormenor mais adiante (v. 7ª parte deste ensaio). São, todas elas, significações imaginárias sociais, ideias reguladoras sociohistoricamente contingentes, produtos do imaginário social instituinte. É isso que nos permite afirmar sem receio de sermos refutados: 

Os homens não nascem nem livres, nem não-livres, nem iguais, nem não-iguais. Nós é que os queremos (nós é que nos queremos) livres e iguais numa sociedade justa e autónoma — sabendo que o sentido destes termos nunca poderá ser definitivamente definido, e que a ajuda que a teoria nos poderá trazer para esta tarefa é sempre radicalmente limitada e essencialmente negativa [35].

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N.B. Este ensaio está dividido em 8 partes, sendo esta a terceira:

1ª parte. Os critérios e os conceitos principais

2ª parte. Um excurso sobre o poder explícito

(3ª parte. A igualdade em relação ao poder político)

4ª parte. A desigualdade em relação ao poder explícito

5ª parte. A igualdade em relação ao poder económico

6ª parte. O poder explícito numa oligarquia electiva e liberal

7ª parte. O poder explícito numa democracia

8ª parte. A esquerda inexistente

que podem ser encontradas, por esta ordem, no Arquivo do Blogue, 2021, Agosto,

no fim da coluna da direita do blogue.

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Notas

 [23] Sobre a distinção entre participável (Fr. «participable») e partilhável (Fr. «partageable») ver Cornelius Castoriadis, “Valeur, égalité, justice, politique de Marx à Aristote et d’Aristote à nous”, em Les carrefours du labyrinthe (Paris: Éditions du Seuil, 1978).  Nesse seu texto, Castoriadis não se refere ao compartilhável. Concentra-se exclusivamente (seguindo na peugada de Aristóteles em A Política) no partilhável, o que se compreende porque o idioma francês não dispõe de palavras equivalentes a compartilhar e compartilhável. Ora, o que está em causa na igualdade em relação ao poder económico não é o que é partilhável, mas o que é compartilhável. Partilhar e compartilhar não são sinónimos. Voltarei a este assunto no texto principal.  

[24] Para o conceito de isonomia (não o termo) na cosmologia de Anaximandro de Mileto (c. 575 a.C.) e para o conceito e o termo de isonomia na medicina de Alcmeão de Crotona, e na arquitectura de Hipódamo de Mileto, na época anterior às reformas democráticas de Clístenes, no primeiro caso, ou sensivelmente na mesma época nos dois outros casos, ver Vlassos Gregory, “Isonomia” (The American Journal of Philology, 1953, Vol. 74, No. 4. 337–366), Paul M. Shepard, Language, truth and power in ancient Greek thought: prolegomena to Nietzsche (1993). Doctoral Dissertations 1896-February, 2014 (https://scholarworks.umass.edu/dissertations_1/1922), pp.113-125; Szilvia Horváth, “The community of equals: Rereading an early democratic concept” (In State and Equality, ed. Attila Károly Molnár-Milán Pap. Budapest: Dialóg-Campus, 2018), pp.21-44. Para o conceito de isonomia como princípio subjacente à isomoira – a divisão equitativa de bens materiais por um grupo de pares – ver Vincent Azoulay, “Rethinking the Political in Ancient Greece” (Annales. Histoire, Sciences Sociales. Volume 69, Issue 3, 2014), p.401-02.

[25] Friedrich A. Hayek, The Constitution of Liberty (1960) (Chicago: The University of Chicago Press 1978, pp.164-66).

[26] O neoliberalismo é uma mudança acentuada da doutrina baseada na crença na beneficência superlativa da “liberdade da iniciativa privada”, da “livre concorrência no mercado” e no “governo mínimo”, conhecida como liberalismo clássico. No liberalismo clássico, os capitalistas (os proprietários dos meios sociais de produção e de troca) pediam ao Estado (o aparelho hierárquico e burocrático detentor do monopólio legal da guarda e do uso das armas de guerra e do uso legal da coerção e da violência física) e ao poder político que o tutela que protegessem os seus direitos de propriedade através de leis e instituições adequadas e, sempre que necessário, através da repressão e da guerra. Ao mesmo tempo, reclamavam do Estado e do poder político a «garantia dos nossos prazeres privados» (Benjamin Constant, De la liberté de anciens comparée à celle des modernes [Sobre a liberdade dos antigos comparada com a dos modernos], 1815) e procuravam fixar os limites da acção do Estado para que não impedisse a fruição desses prazeres privados. Em suma, a doutrina liberal clássica pode ser resumida assim: «Queremos que o governo, o parlamento e a administração pública, assim como os tribunais e os demais órgãos do aparelho de Estado, protejam as nossas propriedades, garantam os nossos prazeres privados, nos deixem actuar sem entraves e não metam o bedelho onde não são chamados». O neoliberalismo vai mais longe ao proclamar que o poder político precisa ser pró-activo na organização do “bom funcionamento do mercado” à escala global. As condições de funcionamento da economia capitalista mundial precisam de ser reconquistadas e defendidas politicamente contra os “excessos” proteccionistas e garantistas do chamado “Estado social” (Ingl. “Welfare State”; Fr. “État-Providence”) — um oximoro inventado para denominar a segurança social pública, a rede pública de infantários e de escolas de todos os graus de ensino, a rede pública de cuidados de saúde (SNS), a emergência e protecção civil, e ainda outros serviços de âmbito universal a preços de equilíbrio, como, por exemplo, os transportes públicos, os correios e telecomunicações públicos, a radiodifusão e a radiotelevisão públicas. Para o neoliberalismo, este acervo de serviços a preços de equilíbrio ou tendencialmente gratuitos (isto é, financiados pelo imposto) constituem grilhões presos a uma bola de ferro que impedem a marcha triunfante da livre iniciativa privada dos capitalistas à escala planetária. Por conseguinte, esses enclaves de economia não-lucrativa devem ser profundamente reestruturados e, se possível, desmantelados, de modo a expandir as bases sólidas a um “mercado livre” em crescimento contínuo. Mas isso não basta. Todos os aspectos dos regimes políticos electivos, do tamanho das circunscrições eleitorais, às decisões dos governos, parlamentos e tribunais, passando pelo âmbito, competências e garantias de isenção das administrações públicas devem ser submetidos à análise económica de custo/benefício em termos monetários. Tudo o que não for rendível deve ser eliminado. Os legisladores são intimados a aprovar um conjunto de incentivos e de leis alegadamente fixo, neutro e universal que permita as “forças de mercado” operarem espontaneamente e sem entraves. O programa político de um governo nunca pode prevalecer sobre o “mecanismo automático de ajustamentos” – isto é, o sistema de preços de mercado, que não é apenas eficiente como maximiza a liberdade dos investidores e dos trabalhadores, assim como as oportunidades para os consumidores fazerem as suas livres escolhas de consumo.

[27] Este episódio é relatado por John Ranelagh em Thatcher’s People: An Insider’s Account of the Politics, the Power, and the Personalities (Fontana, 1992, p. ix).

[28] No seu tratado A Política, Aristóteles afirma que eunomia [à letra, “boa ordem”] significa que «a lei correctamente feita deverá ser o único soberano» e noutra passagem acrescenta: «onde as leis [nomoi] não governam não há comunidade política [politeia]» (Aristotle, Politics [traduzido por Ernest Baker. New York: Oxford University Press, 1967], 1282b19 e 1292a32). Por outras palavras, são as leis elaboradas e aprovadas pelos cidadãos, não um ou alguns cidadãos, que devem governar. Se não for esse caso, não há colectividade política, não há cidadãos propriamente ditos, mas súbditos.  Na sua discussão sobre a questão de saber se a eunomia (o primado da lei) é preferível ao governo do melhor indivíduo (= monarquia), Aristóteles responde afirmativamente, argumentando que, sob a eunomia, «todas as pessoas são homens livres, nada fazem [em princípio] que contrarie a lei, e só actuam fora da alçada da lei em assuntos que a lei, pela sua natureza, é obrigada a omitir». (Ibid., 1286a9).

[29] Ver, a este propósito, Vlassos Gregory, “Isonomia” (The American Journal of Philology, 1953, Vol. 74, No. 4. 337–366) ; Jean-Pierre Vernant, As Origens do Pensamento Grego (Bertrand Brasil, 2002), p.38 ; Mogens H. Hansen, La Démocratie athénienne à l’époque de Démosthène (Paris : Éditions Thalandier, 2009, pp.109-14, 440) ; Cornelius Castoriadis, La cité et les lois. Ce qui fait la Grèce (Paris : Éditions du Seuil, 2008) ; Hannah Arendt, On Revolution (New York : Viking Press, Inc., 1963, pp. 22-23) ; David Kreider, Isonomy.The Greek idea of freedom (Graduate Student Theses, Dissertations, & Professional Papers. 5244. https://scholar works.umt.edu/etd/5244). Athanassios Vamvoukos, Fundamental Freedoms in Athens of the fifth century [B.C.] (Revue Internationale des Droits de l’Antiquité, 3e Série, Tome XXVI, 1979).

[30] Aristóteles define a polis como «uma comunidade [koinoina] de cidadãos [politai] que participam num regime político» ou «sistema político» [politeia]» (Politics, book III, 1276b, tradução de Carnes Lord, University of Chicago Press, 2013, 2nd Edition).

[31] Herodotus: Histories (Book III and IV, Vol. II. Translated by A. D. Godley. London – New York, William Heinemann – G. P. Putnam Sons, 1928). 

[32] Na verdade, não encontrei este termo no dicionário A Greek-English Lexicon, de Henry George Liddell & Robert Scott (revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones,  with the assistance of Roderick McKenzie. Oxford. Clarendon Press. 1940), nem nos outros dicionários de Grego que estão disponíveis na www (https://www.lexilogos. com/english/greek_ancient_dictionary. htm). Por esta razão, não posso excluir a possibilidade de ser eu o autor desse neologismo ou do seu emprego nesta acepção. Se assim for, surpreende-me muito a existência desta lacuna lexical.

[33] Aristóteles, Politics, livro V (translated by H. Rackham. Cambridge, MA, Harvard University Press; London, William Heinemann Ltd. 1944) 1301a[20]. Minha tradução.

[34] Para a elucidação das noções de significação imaginária social, imaginário social instituinte e imaginário social instituído ver de Cornelius Castoriadis, L’Institution Imaginaire de la Société (Paris: Éditions du Seuil, 1975), “Imaginaire et imagination au carrefour (1996), em Figures du Pensable (Paris : Éditions du Seuil, 1999).

[35] Cornelius Castoriadis, Valeur, égalité, justice, politique de Marx à Aristote et d’Aristote à nous, em Les carrefours du labyrinthe (Paris: Éditions du Seuil, 1978), p.412. 

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