(Temas 2, 3 e 4)
“Esquerda”
e “Direita” trocadas por miúdos
do
ponto de vista da democracia (3ª parte) —
A igualdade em relação ao poder político
José Catarino Soares
9. A igualdade em relação ao poder
explícito
A democracia – afirmei no último parágrafo da 2ª parte deste ensaio – não consegue assegurar a igualdade (a identidade contingente) entre os seres humanos em âmbitos muito numerosos e diversos, porque não há nem pode haver igualdade nesses âmbitos.
É possível, porém, instituir a igualdade (a
identidade contingente) entre os cidadãos relativamente às duas vertentes do
poder explícito: a vertente política e a vertente económica. A razão é simples,
embora seja raramente ou nunca enunciada (o leitor encarregar-se-á, se quiser,
de descobrir a razão desta omissão).
O poder político – o poder executivo (ou governativo), o poder legislativo e o poder
jurisdicional – pertence ao âmbito das entidades participáveis. Por isso, é possível realizar a
igualdade de todos os cidadãos em relação ao poder político. Basta, para tanto,
que tal igualdade seja entendida como identidade contingente à participação no poder governativo, no
poder legislativo e no poder jurisdicional.
O poder económico –
a propriedade e a posse (i.e., o controlo efectivo) dos meios industriais de produção (incluindo as terras de
agricultura e de silvicultura e as minas) de bens e serviços – pertence ao âmbito das entidades compartilháveis, mutualizáveis. Por isso, é possível realizar a
igualdade de todos os cidadãos em relação ao poder económico. Basta, para
tanto, que tal igualdade seja entendida como identidade contingente ao compartilhamento, à mutualização dos meios industriais de
produção [23].
Vejamos então, mais de
perto, em que consiste a igualdade em relação a cada uma das duas vertentes do
poder explícito.
10. A igualdade em relação ao
poder político
Os Atenienses dos séculos V e IV a.C. mostraram-nos
concretamente como proceder para realizar a igualdade de todos os cidadãos
relativamente ao poder político. Deram-lhe o nome de isonomia.
10.1. Isonomia/anisonomia
Isonomia (Gr. íσονομία/isonomia, íσος/isos, “igual”, mas
também, “justo” + νόμος/nomos; “lei”, “convenção”, “instituição”,
proveniente de νέμω/nemô, “compartilhar”, “distribuir”) é um termo
criado e usado pelos gregos do século VI a.C. em domínios tão díspares como a
cosmologia, a medicina, a arquitectura e a reforma agrária [24]. Como já foi dito, o
termo foi depois usado pelos democratas atenienses dos séculos V e IV a.C. para
denominar a igualdade política dos cidadãos.
É frequente lermos e ouvirmos a afirmação segundo
a qual a isonomia significava, para os Atenienses dessa época, a igualdade de
todos os cidadãos perante a lei, e/ou leis iguais para todo o tipo de
cidadãos (ricos e pobres, por exemplo), e/ou o primado da lei
relativamente aos caprichos dos indivíduos e às injunções de monarcas, tiranos
ou oligarcas — aforismos tidos como sendo mais ou menos equivalentes e
apresentados como sendo a tradução prática, trocada por miúdos, do que se
designa actualmente como Estado de
direito
(Ingl. rule of law; Fr. État de droit, Al. Rechtsstaat). Esta é, por exemplo, a interpretação de
Friedrich Hayek no seu tratado The Constitution of Liberty [“A Constituição da
Liberdade”] [25], o livro de cabeceira de Margaret
Tatcher, Ronald Reagan, Georges H.W. Bush e outros expoentes do chamado “neoliberalismo” [26].
Mas essa interpretação é muito deficiente e potencialmente enganadora. Sim, é verdade que, para os Atenienses dos séculos V e IV a.C., isonomia significava o princípio da igualdade política. Todavia, a igualdade política em causa na isonomia não se confundia com o primado da lei sobre os caprichos dos indivíduos, a que os atenienses chamavam eunomia [28]. A eunomia, como veremos, é uma consequência da isonomia. A isonomia não era também apenas, nem principalmente, a igualdade dos cidadãos perante a aplicação da lei, mas o igual direito de todos os cidadãos exercerem as suas prerrogativas de cidadãos na feitura das leis, e, por conseguinte, o igual direito de todos os cidadãos ao exercício de todas as magistraturas em todos os ramos do poder político — governativo, legislativo e jurisdicional [29].
Por outras palavras, a isonomia era o igual direito de todos os cidadãos atenienses participarem e a igual probabilidade de todos os cidadãos atenienses serem chamados a participar nas instituições do poder político (legislativo, jurisdicional e executivo), como magistrados; o igual direito de decidirem e a igual probabilidade de serem chamados a decidir soberanamente o teor das leis pelas quais queriam reger-se colectivamente em conformidade com o princípio da eunomia [o primado da lei sobre os caprichos individuais]; o igual direito de decidirem e a igual probabilidade de serem chamados a decidir soberanamente as alterações às leis e às instituições anteriormente estabelecidas; o igual direito de se ocuparem e a igual probabilidade de serem chamados a ocuparem-se efectivamente, no dia-a-dia, de todos os assuntos do domínio público (i.e., o domínio da polis [30]).
No caso da Atenas democrática dos séculos V e IV a.C., o número e a diversidade de cargos/funções que um cidadão era chamado a desempenhar eram muito grandes. Os nomes respectivos desses cargos/funções eram também numerosos: archai, ephetai (éfetas), bouleutai (bouleutas), nomothetai (nomótetas), prytaneis (pritanos), logistái, politái, etc. Porém, para simplificar, podemos reparti-los grosso modo em quatro categorias: membros de um júri no Tribunal do Povo (no caso do poder jurisdicional), membros do Conselho dos Quinhentos (no caso do poder governativo), membros de um conselho ou comissão de jurisconsultos (no caso do poder legislativo), membros de uma comissão ou de um colégio de administradores (no caso da dimensão executiva-administrativa das decisões dos três poderes explícitos).
Por facilidade de
expressão, empregarei o termo magistrado como denominação genérica de todos
esses cargos e, por extensão, de todo e qualquer cargo político ou função
política que um cidadão possa exercer temporariamente numa sociedade democrática. A isonomia era assegurada pelo método principal de escolha
dos magistrados: a tiragem à sorte.
[Na polis ateniense] [t]odos os cargos políticos [entenda-se,
todos os cargos de magistrado] são atribuídos por sorteio; e os incumbidos têm de prestar
contas pelo que fazem durante o seu mandato, e a assembleia geral [de todos os cidadãos, a Eclésia] arbitra em todos os conselhos (Heródoto, III, 80 [31]).
A afirmação de Heródoto não é exacta. Não
eram todos, mas antes a grande maioria dos magistrados atenienses que eram
escolhidos por sorteio. A excepção eram as magistraturas que exigiam uma
competência técnica específica e que constituíam uma pequena minoria relativa.
Nesses casos, a selecção era feita por eleição e não por sorteio.
Era o caso dos comandantes militares – os
10 stratégoi [estrategas] ou seja, generais; os 10 taxiarchoi [taxiarcas],
oficiais de infantaria comandantes de regimentos; os 10 phyliarchoi
[filiarcas], oficiais de cavalaria comandantes de esquadrão, e o kosmétés [prefeito
encarregado do treino militar dos efebos] – dos 10 tesoureiros (helénotamiai)
dos tributos federais da Liga de Delos (478-404 a.C.), dos embaixadores (não
havia embaixadores permanentes, eram todo encarregados de missões diplomáticas
específicas), e do superintendente das fontes, encarregado do abastecimento de
água à cidade (épimilétés tons crépon), função que seria desempenhada
hoje em dia por um engenheiro sanitário e ambiental. Todos estes magistrados
eram eleitos anualmente pela Assembleia do Povo (Ekklésia) onde tinham
assento todos os cidadãos.
Mas é preciso acrescentar que a citação de
Heródoto faz parte de uma explicação das diferenças mais marcantes entre tirania, oligarquia e democracia. E não há qualquer dúvida que a diferença mais
marcante entre a democracia e as outras formas de instituição do poder político
é a isonomia, tal como se traduz nomeadamente na igualdade dos cidadãos perante
a lei, na igual participação dos cidadãos nas magistraturas por sorteio e
rotação dos cargos e na obrigatoriedade dos magistrados prestarem contas (no
plano financeiro, moral e político) pelos seus actos no termo dos seus
mandatos.
Estela grega representando o povo a ser coroado pela democracia, cerca de 336 a.C. |
A eunomia, o primado da lei, é também, sem
dúvida, um aspecto importante da isonomia,
da igualdade política dos cidadãos em todos os planos. Mas é uma consequência
dela, uma vez que, se queremos ser cidadãos livres, só devemos sujeitar-nos a
leis correctamente feitas (como dizia Aristóteles, cf. nota [30]),
e tais leis só poderão ser feitas correctamente com a participação, em pé de
igualdade, de todos os cidadãos.
A anisonomia (Gr. αν-/an-, “des-” [prefixo de negação/privação] + íσος/isos, “igual” + νόμος/nomos, “lei” + isos + nomos) é o dual da isonomia. Significa a desigualdade política, o desigual direito dos cidadãos de exercerem e a desigual probabilidade de serem chamados a exercer todas as suas prerrogativas de cidadãos na feitura e na aplicação das leis, e, por conseguinte, o desigual direito e a desigual probabilidade dos cidadãos na participação (no acesso e no exercício de todas as magistraturas em todos os ramos do poder político — governativo, legislativo e jurisdicional.
Na Atenas democrática dos séculos V e IV a.C., a anisonomia existia na prática relativamente às mulheres atenienses (como veremos na 4ª parte deste ensaio, secção 11), mas não era reconhecida conceptualmente nem na linguagem. O termo anisonomia é, salvo melhor informação, uma criação moderna, assim como o emprego que dele faço aqui como sinónimo de desigualdade política [32].
10.2. Isegoria, isopsefia e isocracia
Para falar de igualdade política, os Atenienses da época democrática tinham vários
termos, além de isonomia, todos compostos também
com o prefixo iso-: isegoria (igualdade no uso da palavra na assembleia geral
do povo e em todos os conselhos, colégios e comissões de magistrados), isopsefia (todos os votos individuais têm o
mesmo valor, não há votos de qualidade), isocracia (igualdade de acesso a
todas as magistraturas) e isogonia (igualdade pelo
nascimento).
Para os propósitos deste ensaio, podemos
considerar a isegoria, a isopsefia e a isocracia como sendo três aspectos
particulares e indispensáveis da isonomia. Resta a isogonia, que suscita um
problema muito antigo e muito controverso: os seres humanos nascem iguais? Sim?
Então, são iguais em quê? São iguais até que ponto?
10.3. Isogonia
Um bom ponto de partida para a discussão é o
parágrafo introdutório da Declaração dos treze Estados unidos da
América (1776), mais conhecida como
Declaração
de Independência dos Estados-Unidos da América:
Consideramos estas verdades evidentes, que todos os homens são criados
iguais, que são dotados pelo seu Criador de certos direitos inalienáveis, que
entre eles estão a Vida, a Liberdade e a busca da Felicidade.
Como se constata, para os autores desta
Declaração, os direitos inalienáveis dos seres humanos são uma consequência da
igualdade pelo nascimento (isogonia), mas tanto a isogonia como os direitos
inalienáveis que dela resultam são atribuídos a uma mesma fonte, que é descrita
como uma entidade extra-social, extra-humana, todo-poderosa: o “Criador.”
Um grande passo em frente, filosoficamente falando, foi dado 13 anos depois, em França, com a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), cujo artigo primeiro reza assim:
Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos. As distinções
sociais só podem ser fundamentadas com base na utilidade pública.
Desapareceu o “Criador” que os independentistas americanos invocavam como magnânimo doador da igualdade, da liberdade e dos demais direitos inalienáveis dos seres humanos. Agora, o nascimento dos seres humanos é encarado como um facto tão natural – e tão cheio ou isento de mistério – como o nascimento de qualquer outro animal. Por outro lado, o sintagma preposicional “[livres e iguais] em direitos” não deixa qualquer dúvida: ele mostra que os deputados constituintes franceses de 1789 atribuíam à liberdade e à igualdade entre os seres humanos um conteúdo normativo, não um conteúdo descritivo. A sua posição neste particular é exactamente a mesma que Abraham Lincoln, presidente dos EUA, assumirá mais de meio século mais tarde, no seu discurso de Springfield em 1857, quando comentou:
Os autores deste nobre utensílio [Lincoln
refere-se à Declaração de
Independência de 1776, N.E] não tencionavam declarar os homens iguais em
todos os pontos.
Cerca de 2.200 anos antes, já Aristóteles (384-322
a.C.) tinha formulado, no livro V do seu tratado sobre A
Política, uma posição semelhante
que não era só a sua, mas dos Atenienses seus contemporâneos e antepassados
próximos.
A democracia surgiu de as pessoas imaginarem que, se são iguais num aspecto
qualquer, são também absolutamente iguais (porque supõem que, por serem todas
igualmente livres, são todas absolutamente iguais); e, por conseguinte, os
democratas, ao considerarem-se iguais, pretendem participar em
tudo [o que diz respeito ao poder político] em pé de igualdade [33].
O ponto a reter nesta citação é o da compreensão
clara de que a isogonia não tem uma fonte extra-social
ou extra-humana, não é um “dado” da biosfera. É, isso sim, um produto da
imaginação humana criadora de significado no campo social-histórico, uma ideia
reguladora sociohistoricamente contingente — Cornelius Castoriadis diria: uma
criação do imaginário social
instituinte, uma significação
imaginária social, respectivamente [34]. E o mesmo se aplica a
todas as outras declinações da isonomia (igualdade política) – isogoria, isopsefia, isocracia – e também, claro, à liberdade (autonomia) de que falaremos em mais pormenor
mais adiante (v. 7ª parte deste ensaio). São, todas elas, significações imaginárias sociais, ideias
reguladoras sociohistoricamente contingentes, produtos do imaginário social
instituinte. É isso que nos permite afirmar sem receio de sermos
refutados:
Os homens não nascem nem livres, nem
não-livres, nem iguais, nem não-iguais. Nós é que os queremos (nós é que
nos queremos) livres e iguais numa sociedade justa e autónoma — sabendo que o
sentido destes termos nunca poderá ser definitivamente definido, e que a ajuda
que a teoria nos poderá trazer para esta tarefa é sempre radicalmente limitada
e essencialmente negativa [35].
………………………………………………………………………………………….
N.B. Este ensaio está dividido em 8 partes, sendo
esta a terceira:
1ª parte. Os critérios e os conceitos principais
2ª parte. Um excurso sobre o poder explícito
(3ª parte. A igualdade em relação
ao poder político)
4ª
parte. A desigualdade em
relação ao poder explícito
5ª parte. A igualdade em relação ao poder
económico
6ª parte. O poder explícito numa oligarquia
electiva e liberal
7ª parte. O poder explícito numa democracia
8ª parte. A esquerda inexistente
que podem ser encontradas, por esta ordem, no Arquivo do Blogue, 2021, Agosto,
no fim da coluna da direita do blogue.
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Notas
[23] Sobre a distinção entre participável (Fr. «participable») e partilhável (Fr. «partageable») ver Cornelius Castoriadis, “Valeur, égalité, justice, politique de Marx à Aristote et d’Aristote à nous”, em Les carrefours du labyrinthe (Paris: Éditions du Seuil, 1978). Nesse seu texto, Castoriadis não se refere ao compartilhável. Concentra-se exclusivamente (seguindo na peugada de Aristóteles em A Política) no partilhável, o que se compreende porque o idioma francês não dispõe de palavras equivalentes a compartilhar e compartilhável. Ora, o que está em causa na igualdade em relação ao poder económico não é o que é partilhável, mas o que é compartilhável. Partilhar e compartilhar não são sinónimos. Voltarei a este assunto no texto principal.
[24] Para o conceito de isonomia
(não o termo) na cosmologia de Anaximandro de Mileto (c. 575 a.C.) e para o
conceito e o termo de isonomia na medicina de Alcmeão de Crotona, e na
arquitectura de Hipódamo de Mileto, na época anterior às reformas democráticas
de Clístenes, no primeiro caso, ou sensivelmente na mesma época nos dois outros
casos, ver Vlassos Gregory, “Isonomia” (The American Journal of Philology,
1953, Vol. 74, No. 4. 337–366), Paul M. Shepard, Language, truth and power in ancient
Greek thought: prolegomena to Nietzsche (1993). Doctoral Dissertations
1896-February, 2014 (https://scholarworks.umass.edu/dissertations_1/1922), pp.113-125; Szilvia Horváth, “The
community of equals: Rereading an early democratic concept” (In State and
Equality, ed. Attila Károly Molnár-Milán Pap. Budapest: Dialóg-Campus,
2018), pp.21-44. Para o conceito de isonomia como princípio subjacente à
isomoira – a divisão equitativa de bens materiais por um grupo de pares
– ver Vincent Azoulay, “Rethinking the Political in Ancient Greece” (Annales.
Histoire, Sciences Sociales. Volume 69, Issue 3, 2014), p.401-02.
[25] Friedrich A. Hayek, The
Constitution of Liberty (1960) (Chicago: The University of Chicago Press
1978, pp.164-66).
[26] O neoliberalismo é uma mudança
acentuada da doutrina baseada na crença na beneficência superlativa da
“liberdade da iniciativa privada”, da “livre concorrência no mercado” e no
“governo mínimo”, conhecida como liberalismo clássico. No liberalismo
clássico, os capitalistas (os proprietários dos meios sociais de produção e de
troca) pediam ao Estado (o aparelho hierárquico e burocrático detentor do
monopólio legal da guarda e do uso das armas de guerra e do uso legal da coerção
e da violência física) e ao poder político que o tutela que protegessem os seus
direitos de propriedade através de leis e instituições adequadas e, sempre que
necessário, através da repressão e da guerra. Ao mesmo tempo, reclamavam do
Estado e do poder político a «garantia dos nossos
prazeres privados» (Benjamin Constant, De la liberté de anciens comparée à
celle des modernes [Sobre a liberdade dos antigos comparada com a dos
modernos], 1815) e procuravam fixar os limites da acção do Estado para que não
impedisse a fruição desses prazeres privados. Em suma, a doutrina liberal
clássica pode ser resumida assim: «Queremos que o
governo, o parlamento e a administração pública, assim como os tribunais e os
demais órgãos do aparelho de Estado, protejam as nossas propriedades, garantam
os nossos prazeres privados, nos deixem actuar sem entraves e não metam o
bedelho onde não são chamados». O neoliberalismo vai mais longe ao
proclamar que o poder político precisa ser pró-activo na organização do “bom funcionamento do mercado” à escala global. As
condições de funcionamento da economia capitalista mundial precisam de ser
reconquistadas e defendidas politicamente contra os “excessos” proteccionistas
e garantistas do chamado “Estado social”
(Ingl. “Welfare State”; Fr. “État-Providence”) — um oximoro inventado para
denominar a segurança social pública, a rede pública de infantários e de escolas de todos os graus de ensino, a rede pública de
cuidados de saúde (SNS), a emergência e protecção civil, e ainda outros serviços de âmbito universal a preços de equilíbrio,
como, por exemplo, os transportes públicos, os correios e telecomunicações
públicos, a radiodifusão e a radiotelevisão públicas. Para o neoliberalismo,
este acervo de serviços a preços de equilíbrio ou tendencialmente gratuitos (isto
é, financiados pelo imposto) constituem grilhões presos a uma bola de ferro que
impedem a marcha triunfante da livre iniciativa privada dos capitalistas à
escala planetária. Por conseguinte, esses enclaves de economia não-lucrativa
devem ser profundamente reestruturados e, se possível, desmantelados, de modo a
expandir as bases sólidas a um “mercado livre” em crescimento contínuo. Mas
isso não basta. Todos os aspectos dos regimes políticos electivos, do tamanho
das circunscrições eleitorais, às decisões dos governos, parlamentos e
tribunais, passando pelo âmbito, competências e garantias de isenção das
administrações públicas devem ser submetidos à análise económica de
custo/benefício em termos monetários. Tudo o que não for rendível deve ser
eliminado. Os legisladores são intimados a aprovar um conjunto de incentivos e
de leis alegadamente fixo, neutro e universal que permita as “forças de mercado”
operarem espontaneamente e sem entraves. O programa político de um governo
nunca pode prevalecer sobre o “mecanismo automático de ajustamentos” – isto é,
o sistema de preços de mercado, que não é apenas eficiente como maximiza a
liberdade dos investidores e dos trabalhadores, assim como as oportunidades
para os consumidores fazerem as suas livres escolhas de consumo.
[27] Este episódio é relatado
por John Ranelagh em Thatcher’s People: An
Insider’s Account of the Politics, the Power, and the Personalities (Fontana, 1992, p. ix).
[28] No seu tratado A Política,
Aristóteles afirma que eunomia [à letra, “boa ordem”] significa que «a lei correctamente feita deverá ser o único soberano»
e noutra passagem acrescenta: «onde as leis [nomoi]
não governam não há comunidade política
[politeia]» (Aristotle, Politics [traduzido por Ernest Baker. New York:
Oxford University Press, 1967], 1282b19 e 1292a32). Por outras palavras, são as
leis elaboradas e aprovadas pelos cidadãos, não um ou alguns cidadãos, que
devem governar. Se não for esse caso, não há colectividade política, não há
cidadãos propriamente ditos, mas súbditos.
Na sua discussão sobre a questão de saber se a eunomia (o primado da lei) é preferível ao
governo do melhor indivíduo (= monarquia), Aristóteles responde
afirmativamente, argumentando que, sob a eunomia, «todas as
pessoas são homens livres, nada fazem [em princípio] que
contrarie a lei, e só actuam fora da alçada da lei em assuntos que a lei, pela
sua natureza, é obrigada a omitir». (Ibid., 1286a9).
[29] Ver, a este propósito, Vlassos Gregory, “Isonomia” (The American Journal of
Philology, 1953, Vol. 74, No. 4. 337–366) ; Jean-Pierre Vernant, As Origens do
Pensamento Grego (Bertrand Brasil, 2002), p.38 ; Mogens H. Hansen, La Démocratie
athénienne à l’époque de Démosthène (Paris : Éditions Thalandier,
2009, pp.109-14, 440) ; Cornelius Castoriadis, La cité et les lois. Ce qui fait la
Grèce (Paris : Éditions du Seuil, 2008) ; Hannah Arendt, On Revolution (New
York : Viking Press, Inc., 1963, pp. 22-23) ; David Kreider, Isonomy.The
Greek idea of freedom (Graduate Student Theses, Dissertations, &
Professional Papers. 5244. https://scholar
works.umt.edu/etd/5244). Athanassios Vamvoukos, Fundamental Freedoms in Athens of
the fifth century [B.C.] (Revue
Internationale des Droits de l’Antiquité, 3e Série, Tome XXVI,
1979).
[30] Aristóteles define a polis
como «uma comunidade [koinoina] de cidadãos [politai] que participam num regime político» ou «sistema político» [politeia]» (Politics,
book III, 1276b, tradução de Carnes Lord, University of Chicago Press, 2013, 2nd
Edition).
[31] Herodotus: Histories (Book III and IV, Vol. II. Translated by A. D. Godley. London – New York, William Heinemann – G. P. Putnam Sons, 1928).
[32] Na verdade, não encontrei este termo
no dicionário A Greek-English Lexicon, de Henry George Liddell & Robert Scott
(revised and augmented throughout by Sir Henry Stuart Jones, with the assistance of Roderick McKenzie. Oxford.
Clarendon Press. 1940), nem nos outros dicionários de Grego que estão
disponíveis na www (https://www.lexilogos. com/english/greek_ancient_dictionary. htm).
Por esta razão, não posso excluir a possibilidade de ser eu o autor desse
neologismo ou do seu emprego nesta acepção. Se assim for, surpreende-me muito a
existência desta lacuna lexical.
[33] Aristóteles, Politics, livro V (translated
by H. Rackham. Cambridge, MA, Harvard University Press; London, William
Heinemann Ltd. 1944) 1301a[20]. Minha tradução.
[34] Para a elucidação das
noções de significação imaginária social, imaginário social
instituinte e imaginário social instituído ver de Cornelius
Castoriadis, L’Institution Imaginaire de la Société (Paris: Éditions du Seuil,
1975), “Imaginaire et imagination au carrefour” (1996), em Figures du
Pensable (Paris : Éditions du Seuil, 1999).
[35] Cornelius Castoriadis, “Valeur, égalité, justice, politique de Marx à Aristote et d’Aristote à nous”, em Les carrefours du labyrinthe (Paris: Éditions du Seuil, 1978), p.412.
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