(Temas 2, 3 e 4)
Esquerda”
e “Direita” trocadas por miúdos
do
ponto de vista da democracia (4ª Parte) —
A desigualdade
em relação ao poder explícito
José Catarino Soares
11. A desigualdade em relação ao poder explícito
No que respeita aos atenienses nativos (Gr. astoi), a democracia ateniense caracterizava-se pela
total anisonomia entre os homens atenienses (detentores de todos os direitos de
participação igualitária no poder político) e as mulheres atenienses (desprovidas
de qualquer direito de participação no poder político), ainda que dotadas de
muitos direitos “cívicos” [36].
11.1. Carácter restrito e parcial
da democracia ateniense
Não há notícia sequer de nenhum retor (nome dado aos cidadãos dotados de invulgares
talentos na enunciação e defesa de políticas públicas) que tivesse questionado a
exclusão das mulheres atenienses da cidadania. Só temos conhecimento das críticas
veladas de alguns filósofos sofistas (como Górgias) e os remoques de alguns
dramaturgos, sob a forma corrosiva da comédia (como Aristófanes).
Os Atenienses também nunca desenvolveram políticas
públicas destinadas a permitir a aquisição da cidadania pelos metecos (os
estrangeiros domiciliados em Atenas) em tempo de paz, sem, todavia, comprometer
a coesão cultural e a segurança militar da polis — um assunto, sem dúvida, melindroso, mas debatível.
A concessão de naturalização a um meteco foi sempre entendida como uma distinção honorífica só reservada a quem tivesse prestado (ou pudesse vir a prestar) inestimáveis serviços à polis ateniense, nunca como um direito que se poderia adquirir mediante o preenchimento de certos requisitos alcançáveis por pessoas comuns. Só em duas ocasiões é que os Atenienses concederam a cidadania a fortes contingentes de metecos: aos habitantes de Plateias, em 427 a.C., e aos habitantes de Samos, em 405 a.C., ambas durante a guerra do Peloponeso. Em ambos os casos, fizeram-no não por generosidade, mas para recompensar extraordinários sacrifícios e actos de bravura desses seus lealíssimos aliados.
Por outro lado, e passando agora para o plano
económico, a democracia ateniense também nunca questionou a escravidão. Foi
preciso que Filipe da Macedónia os tivesse esmagado em 338, para que os
cidadãos atenienses tivessem mudado de ideias no intervalo de alguns dias,
prometendo a liberdade aos escravos e a cidadania aos metecos. Ora, bastou que
soubessem, entretanto, que Filipe da Macedónia estava disposto a negociar uma
paz honrosa, para imediatamente darem o dito por não dito e anularem as suas
promessas [37]. Em tempo de paz, houve sempre poucas libertações de
escravos e poucas naturalizações de metecos na Atenas democrática.
O ponto importante a destacar neste particular não
é, porém, a existência de numerosos metecos nem de numerosos escravos na polis ateniense. A presença de artistas, artesãos,
comerciantes, marinheiros e colonos estrangeiros em cidades e países muito
distantes das suas terras de origem, assim como a presença de escravos entre as
populações livres, eram realidades comuns em todo o mundo antigo pós-gentílico,
não apenas na Grécia. O ponto importante é a democracia ateniense (baseada na
isonomia) nunca ter questionado a exclusão das mulheres atenienses da
cidadania, a escravidão e a recusa de uma integração mais ampla dos metecos na
cidadania.
Os cidadãos atenienses da era democrática também
nunca questionaram a desigualdade económica entre ricos e pobres, uma desigualdade
que, aliás, abrangia não apenas os cidadãos, mas também os metecos e até os
escravos [38]. A polis ateniense limitou-se a taxar os cidadãos ricos
e os metecos ricos com um imposto sobre a fortuna (denominado eisphora) e com o pagamento de uma espécie de serviços de
mecenato semi-obrigatórios (denominados liturgias) para financiar o teatro, as festas da cidade e a manutenção
da frota de guerra. Os metecos (tanto homens como mulheres) que não eram ricos
tinham também de pagar um imposto chamado métoikion. A propriedade privada dos meios sociais de
produção e de troca dos bens e serviços, na origem da desigualdade de
rendimento e património entre ricos e pobres, nunca foi posta em causa, salvo
como motivo de escárnio e risota (como na Assembleia das Mulheres de Aristófanes).
Tudo isto prova que a polis ateniense nunca foi uma
democracia integral, que reconhecesse a igualdade de todos os seus naturais em
relação tanto ao poder político como ao poder económico. Foi sempre uma
democracia restrita, mesmo no âmbito político – visto que a cidadania e a
isonomia estavam reservadas apenas aos Atenienses do sexo masculino, e, entre
estes, apenas aos que fossem filhos de pai e mãe ambos também, comprovadamente,
naturais de Atenas –, e foi sempre uma democracia parcial, truncada, pela sua
recusa de questionar a desigualdade em relação ao poder económico.
O valor da democracia ateniense (que é imenso), não é, porém, o de constituir um modelo a copiar, mas o de ter constituído um gérmen de democracia, um exemplo concreto da possibilidade de superar os obstáculos que uma sociedade enfrenta para se auto-instituir explicitamente como sociedade autónoma e justa.
11.2. A desigualdade posta em
causa
No mundo antigo pós-gentílico, a actividade
política (a actividade colectiva,
explícita, consciente) instituinte era praticamente inexistente e mesmo
na Grécia democrática, mesmo na Atenas democrática dos séculos V e IV a.C.,
essa actividade ficou fortemente limitada ao domínio estritamente político,
como acabámos de ver.
Após um longo interregno de 1.600 anos, tudo
começou a mudar neste particular na Europa ocidental, a partir, grosso modo,
do século XIII, e mais ainda nos tempos modernos. Nas Repúblicas italianas de
Florença, Veneza, Bolonha, Novara, Vicenza e Pisa dos séculos XIII e XIV [39] e, em particular, na
revolta dos cardadores e tintureiros de lã de Florença em 1378-1382,
conhecida como a revolta dos Ciompi [40]; na grande insurreição
dos camponeses-caseiros e artesãos urbanos em 1381 na Inglaterra; na
generalização da ensaculação nas cidades de Gerona
(1467), Barcelona (1498), Perpignan (1499) e Tarragona (1501) do reino de
Aragão [41]; nas guerras camponesas na Alemanha, Áustria e Suíça do
século XVI; nos true levellers [genuínos niveladores] (também
conhecidos por diggers [escavadores]) na
Inglaterra do século XVII; na Constituição da Pensilvânia de 1776 nos EUA; nos Direitos
do Homem (1791)
de Thomas Paine durante a revolução francesa de 1789-1792 e no Manifesto
dos Iguais
de Grachus Babeuf e Sylvain Maréchal em 1796, encontramos precisamente o
questionamento aberto tanto da desigualdade política como da desigualdade
económica. E esse questionamento, tomando embora formas diversas, umas
incipientes outras mais desenvolvidas, nunca mais cessou desde então.
Os movimentos emancipadores modernos, com especial
destaque para o movimento pró-igualitário das mulheres, que ficou conhecido
como o movimento das sufragistas, e sobretudo para os movimentos trabalhistas
(cartistas, socialistas, comunistas, anarquistas), puseram a questão: pode
haver democracia, pode haver igual oportunidade de participação para todos os adultos que querem participar
no poder político, numa sociedade em que as mulheres estão, por lei ou costume,
excluídas da cidadania e onde existe e se reconstitui constantemente uma tremenda desigualdade económica, que
ainda por cima se traduz imediatamente em desigualdade de poder político?
Estas questões não desapareceram. Em certo sentido, pode dizer-se que se tornaram mais abrangentes e homogéneas dada a hegemonia mundial que o modo capitalista de produção conseguiu alcançar, adquirindo assim uma nova acuidade.
Manifestação dos Industrial Workers of the World (IWW) em Nova Iorque em 1914. |
Hoje em dia – inclusivamente na Europa, na América do Norte, no Japão, na Austrália e na Nova Zelândia, onde as condições de vida e de trabalho da população trabalhadora são (comparativamente às de outros continentes) melhores e mais amenas graças a mais de dois séculos de duras lutas dos trabalhadores assalariados e, no caso da Austrália e da Nova Zelândia, devido à escassez relativa de força de trabalho (“mão de obra”) assalariável – é impossível ignorar as tremendas desigualdades económicas que existem entre podres de rico, ricos, remediados e pobres, para utilizar as categorias empíricas do senso comum.
11.3. A desigualdade económica
Para fixar ideias, chamemos multimilionários aos indivíduos com “activos” superiores a 1 milhão de dólares americanos [42], centi-multimilionários aos indivíduos com “activos” superiores 100 milhões de dólares americanos, e mega-multimilionários aos indivíduos com “activos” superiores a 1000 milhões de dólares americanos. Pois bem, em 2020, existiam no planeta 49,1 milhões de multimilionários com “activos” entre 1 milhão e 5 milhões de dólares americanos; 4,5 milhões de multimilionários com “activos” entre 5 e 10 milhões de dólares americanos; 2,5 milhões de multimilionários com “activos” superiores a 10 milhões de dólares americanos; 513.444 multimilionários com “activos” superiores a mais de 30 milhões de dólares americanos e 215.030 multimilionários com “activos” superiores a 50 milhões de dólares americanos. Estes multimilionários somam, todos juntos, 56,1 milhões de pessoas (1,1 % dos adultos do planeta) mas possuem conjuntamente uma fortuna de 191,6 biliões de dólares que representa 46% da riqueza monetizável mundial [43].
Uma análise mais fina
revela que existiam 68.010 centi-multimilionários, dos quais 5.332 possuíam
mais de 500 milhões de dólares americanos [44] e 2.189 mega-multimilionários que possuíam mais de
1000 milhões de dólares americanos. Estes 2.189 mega-multimilionários, com uma
fortuna total avaliada em 10,2 biliões de dólares, [45] têm mais “activos” do que
4.600 milhões de pessoas (60% da população do planeta) [46]. Em 2018, os 26
mega-multimilionários mais ricos do mundo tinham mais “activos” do que 3.800 milhões de
pessoas, quase metade da população mundial actual [47]. Em 2019, os 1% mais
ricos (56,1 milhões de multimilionários) tinham mais “activos” do que 6.900
milhões de pessoas, 87% da população mundial [48].
Consideremos, por exemplo, um desses
mega-multimilionários, Jeff Bezos, o fundador, director executivo e principal
accionista da firma transnacional de comércio electrónico Amazon, da
firma aeroespacial Blue Origin, do jornal Washington Post e da
firma de capital de risco Bezos Expeditions. Com uma fortuna calculada
em 200 mil milhões de dólares americanos em Junho de 2021, é actualmente o
homem mais rico do mundo. Para termos uma ideia do que isso representa, bastará
dizer que 1% da sua fortuna em 2018 (quando ainda “só” tinha 112 mil milhões de
dólares americanos) era equivalente ao orçamento da saúde da Etiópia desse ano,
um país com 105 milhões de pessoas [49].
Eis, porém, um auspicioso sinal dos tempos: ninguém acreditará, presumo, que Bezos deve a sua fortuna ao facto de ele ser mais inteligente, mais inventivo, mais criativo, mais empreendedor, mais trabalhador do que as demais 7.873 milhões de pessoas que existem actualmente (dia 20 de Junho de 2021) no planeta. Também poucos serão os que acreditarão que a imensa fortuna de Bezos se deve a uma sorte inaudita, como a que os gregos antigos acreditavam estar na origem da imensa fortuna do rei Creso (que se teria banhado nas mesmas águas do rio Pactolo em que o rei Midas teria lavado as mãos para se livrar do seu toque que tudo transformava em ouro), ou que se deve à origem divina do próprio Bezos, como os egípcios antigos acreditavam ser a razão de ser da imensa fortuna e poder dos seus faraós.
E quem diz Bezos, diz os outros 2.189 mega-multimilionários que constam do relatório anual Report On Billionaire Wealth (2020) do banco suíço UBS e da consultora PWC, da lista anual The World’s Billionaires da revista Forbes e do índice diário Bloomberg Billionaires Index; e diz também os 56,1 milhões de multimilionários que são referidos no Global Wealth Report do banco suíço Crédit Suisse e no Wealth Report da firma imobiliária Knight Frank.
Por outro lado, é impossível fazer vista grossa
sobre estes factos dizendo que tudo o que nos interessa é a política e que a
compaixão pelos pobres deve ficar a cargo da “sociedade civil” (seja lá o que
isso for [50]) sem interferências do poder político ou, pelo contrário,
que a luta contra a pobreza deve ser objecto de políticas públicas transversais
e bem articuladas (emprego, habitação, educação, segurança social, etc.). A
questão não é de ter ou não ter compaixão pelos pobres, ou de ter ou não ter
políticas públicas de combate contra a pobreza. A questão é que o crescimento
constante das desigualdades entre podres de rico, ricos, remediados e pobres é uma consequência
inevitável do regime capitalista que reina supremo em todos os países a nível
mundial e que falar de igualdade (económica ou política) numa tal sociedade é
um logro.
11.4. A desigualdade económica como
garante a desigualdade política
De resto, não há nem poderia haver igualdade
política nas condições que conhecemos, com uma tal concentração de poder
económico e com tudo o que essa concentração implica, quer o poder económico
tome a forma clássica de firmas capitalistas privadas (sociedades anónimas
[S.A.], sociedades por quotas, sociedades por comandita, etc.), quer haja
confusão entre poder político e poder económico entre as mãos de uma
tecnoburocracia gestionária seleccionada e respaldada pelos governos em
exercício — como, por exemplo (em Portugal), firmas como a Infraestruturas de
Portugal, S.A.; a Parvalorem, S.A.; a Caixa Geral de Depósitos, S.A.; a Administração
do Porto de Lisboa, S.A.; a TAP-Air Portugal, no sector empresarial do Estado.
O melhor exemplo disso são os EUA, o país
capitalista mais poderoso do mundo e aquele onde existem mais
mega-multimilionários em número absoluto –110.850, ou seja, 55% do número total
de mega-multimilionários à escala mundial – e o 3º país do mundo com o maior
número de multimilionários relativamente à população total — 8% de
multimilionários, só ultrapassado pela Austrália (9,4%) e pela Suíça (14, 9%) [51].
Em 1895, Mark Hanna – o muito insinuante e muito
rico capitalista-gestor do carvão e do aço e o muito bem-sucedido director de
companhas eleitorais e senador do partido republicano (era conhecido por “king-maker”
[fazedor de reis]) – disse esta frase memorável: «Há duas coisas que são importantes em política.
A primeira é dinheiro e da segunda não consigo lembrar-me» [52]. Um exemplo importante
deste aforismo é a compra-de-eleições-pela-compra-de-candidatos nos EUA, de
que Mark Hanna é um bom exemplo, pois foi ele que assegurou a eleição do 25º
presidente dos EUA, William McKinley (1897-1901) por meio de um maciço apoio
financeiro da oligarquia industrial (incluindo o seu) ao candidato que seria
eleito, cujos montantes atingiram níveis desconhecidos até então.
Este é um assunto que foi estudado a fundo, desde o seu livro de 1995 (Golden Rule: The Investment Theory of Party Competition, Chicago: The University of Chicago Press), pelo politólogo Thomas Ferguson nos EUA — um país que se presta muito bem para isso, pois são um exemplo acabado de um regime de oligarquia electiva liberal (conhecido do grande público pelas denominações erróneas “democracia representativa” e “democracia liberal”) há mais de um século. A investigação de Ferguson e dos seus colegas mostraram que a capacidade de alguém se fazer eleger para o Congresso (Câmara de Representantes + Senado) e para os cargos governamentais (vulgo, cargos executivos) – governadores dos Estados federados, presidentes das câmaras municipais [mayors], procuradores gerais da República [state general attorneys] em 43 dos 50 Estados onde estes são eleitos e, sobretudo, presidentes da República – pode ser prevista, com uma notável precisão, por meio de um única variável: o montante dos gastos da respectiva campanha eleitoral.
Todo o sistema político americano funciona na base
do princípio “quanto mais dólares, mais
votos”, e não, como apregoam
os seus defensores, na base do princípio, “1 cidadão, 1 voto”. Este é um veredicto sobre uma tendência muito forte que
vem de um passado remoto na história política americana e que se tem mantido
até aos dias de hoje, incluindo as últimas eleições — para a Câmara dos
Representantes de Novembro de 2020 e para a presidência da República de
Novembro de 2020 [53].
Basicamente, um indivíduo consegue a percentagem de votos que
corresponde à percentagem de dinheiro que gastou [na
sua campanha eleitoral]. É uma
relação espantosamente densa e é muito directa e vale para centenas de eleições.
Foi assim que Thomas Ferguson resumiu para o
grande público o resultado das suas investigações [54].
Se o resultado das eleições americanas é
previsível (como é, de facto) seguindo o rasto e medindo o montante de dinheiro
que cada candidato consegue angariar para a sua campanha eleitoral, não admira
que a agenda política e as políticas públicas que irão ser adoptadas sejam
decididas e configuradas de modo a favorecer maciçamente os mesmos interesses
que conseguem fazer eleger os candidatos que apoiam.
Foi o que mostraram Martin Gilens e Benjamin I.
Page, em 2014, com base numa análise estatística multivariada de
variáveis-chave relativas a 1.799 iniciativas de política pública entre 1980 e
2002 [55]. Em 2017, Gilens e Page
analisaram cerca de 2000 decisões de política pública a nível federal e
descobriram que as firmas mais ricas e os grupos de interesses organizados
tinham tido muito mais êxito em conseguir que as suas políticas públicas
preferidas fossem aprovadas e concretizadas do que os Americanos comuns [56].
Nos EUA, os
nossos achados indicam que a maioria não manda — pelo menos no sentido causal
de determinar realmente resultados de política pública. Quando a maioria dos
cidadãos discorda das elites económicas e/ou dos interesses organizados, ela
geralmente perde. Mais ainda, […] mesmo quando maiorias bem amplas de
Americanos favorecem uma mudança de políticas, elas geralmente não a conseguem
obter [57]
Foi assim que Gilens e Page resumiram para o
grande público o resultado das suas investigações.
…………………………………………………………………………
N.B. Este ensaio está dividido em 8 partes, sendo
esta a quarta:
1ª parte. Os critérios e os conceitos principais
2ª parte. Um excurso sobre o poder explícito
3ª parte. A igualdade em relação ao poder político
(4ª parte. A
desigualdade em relação ao poder explícito)
5ª parte. A igualdade em relação ao poder
económico
6ª parte. O poder explícito numa oligocracia electiva liberal
7ª parte. O poder explícito numa democracia
8ª parte. A esquerda acomodatícia
que podem ser encontradas, por esta ordem, no Arquivo do Blogue, 2021, Agosto,
no fim da coluna da direita do blogue.
………………………………………………………………………..
Notas
[36] Apesar de excluídas da cidadania, as
mulheres atenienses não eram um elemento amorfo da polis, bem longe disso, por várias
razões. Por um lado, elas pertenciam a um oikos (= agregado familiar), a
primeira forma de existência institucional do dêmos (povo), sem o qual
não haveria nem pólis nem politeia, «e,
ao mesmo tempo, um primeiro campo onde se realiza[va] um certo tipo de poder: o
poder do homem sobre a mulher e sobre as crianças, e o poder do homem e da
mulher sobre os escravos» (C. Castoriadis, La Cité et les Lois. Ce
qui fait la Grèce. 2. Paris :
Éditions du Seuil, 2008, p.178). Por outro lado, as
mulheres atenienses tinham o direito de
assistir às peças de teatro, e as mulheres casadas participavam na pólis através
das festas religiosas, que eram festas cívicas, como as Panateneias e as
Tesmofórias, através do sacerdócio (os cargos sacerdotais eram cargos públicos)
e – ponto politicamente muito importante
– através da maternidade, porque a legislação a partir de Péricles obrigava a
que o cidadão ateniense fosse filho não só de pai ateniense, mas também
de mãe ateniense. Só isso lhes conferia o estatuto de astenoi (atenienses
de gema). As mulheres livres, mas metecas [= não-atenienses], mesmo que fossem
casadas com cidadãos atenienses, geravam meninos que eram notoi (bastardos),
mas não astenoi, e, por conseguinte, potencialmente cidadãos. As mulheres
atenienses pobres desempenhavam também um importante papel socioeconómico
porque tinham de trabalhar fora do oikos para ajudarem no sustento das
suas famílias. Desempenhavam muitas profissões nesse âmbito. Eram tecedeiras,
lavadeiras, enfermeiras, parteiras, merceeiras, vendedeiras de tecidos e
produtos de beleza. E algumas mulheres, tanto atenienses como metecas,
conseguiam influenciar o debate político pela sua inteligência, saber e
perspicácia. Eram as chamadas hetáirai (cortesãs), de que o exemplo mais
conhecido é o da meteca Aspásia de Mileto, a companheira de Péricles depois
deste se ter divorciado e, na prática, a sua segunda esposa.
[37] Mogens H. Hansen, op.cit.,
p.117.
[38] Seria
um grave erro tratar os escravos como uma classe (socioeconómica) única, porque
um pequeno número deles pertencia à classe rica e exploradora. Eram banqueiros,
comandantes de navios comerciais, empreiteiros, contramestres, feitores que
dirigiam outros escravos que trabalhavam às suas ordens. Por exemplo, o
homem mais rico de Atenas, no início do século IV a.C., era Pásion, que tinha
sido escravo, se tinha tornado meteco, e que só conseguiu adquirir o estatuto
de cidadão no fim da sua vida. Seria igualmente um grave erro tratar os metecos
como uma classe (socioeconómica) única, porque muitos deles pertenciam à classe
rica e exploradora. Por exemplo, a maior manufactura de Atenas no século V a.C.
era uma fábrica de escudos de guerra que empregava cerca de uma centena de
escravos. Os seus donos eram os irmãos Lísias e Polémarco, ambos metecos (cf.
Hansen, op.cit., p.116). Por último, seria um grave erro tratar os
cidadãos como uma classe (socioeconómica) única porque a maioria deles eram
jornaleiros, artesãos, marinheiros, remadores, pescadores, feirantes e pequenos
agricultores cujos rendimentos eram amiúde tão modestos que lhes conferiam o
direito de ficarem isentos de pagamento dos impostos cobrados aos cidadãos e
metecos ricos: a eisphora e as liturgias.
[39] O método da tiragem à sorte para a
selecção de magistrados está documentado relativamente a todas estas comunas
livres e repúblicas italianas durante os séculos XIII e XIV. Ver Yves Sintomer, Petite histoire de l’expérimentation démocratique.
Paris : Éditions La Découverte, 2011.
[40] Gene A. Brucker, «The
Ciompi Revolution», em Nicolai Rubinstein (dir.), Florentines Studies. Politics
and Society in Renaissance Florence, op.
cit. ; Alessandro Stella, La Révolte des Ciompi, éditions de l’EHESS,
Paris, 1993.
[41] A ensaculação era
um método de tiragem à sorte de magistrados a partir de um saco onde eram
previamente depositados os nomes das pessoas a serem sorteadas. Cf.
Yves Sintomer, op.cit.
[42] Na gíria financeira, os “activos” são
valores patrimoniais positivos, representativos de créditos, direitos ou bens
que o agente económico seu titular possui ou tem a haver.
[43] Fonte: James Davies,
Rodrigo Lluberas e Anthony Shorrocks, “Crédito Suisse Global Wealth Databook
2021”, Global
Wealth Report (2021), do banco suíço Crédit Suisse e da consultora PWC.
[44]
Fonte : Global Wealth Report (2021).
Crédit Suisse/ PWC.
[45]
Fonte. Riding the Storm. UBS/PWC
Billionaire Report 2020
[46] Fonte: Time to Care. Oxfam Briefing
Paper. 2020. A Oxfam fala em 2.153 mega-multimilionários em 2019.
[47] Fonte: Time to Care.
Oxfam Briefing Paper. 2020.
[48] Cálculos da Oxfam em Public Good or
Private Wealth? (Oxfam Briefing Paper, January 2019), baseados no
relatório da Forbes, The World’s Billionaires (2018) e no relatório do
Crédit Suisse, World Wealth Report Databook (2018). Para mais pormenores ver “nota
metodológica” http://dx.doi.org/10.21201/2019.3651.
[49] Cálculos da Oxfam em Public Good or
Private Wealth? Oxfam Briefing Paper, January 2019. Para os cálculos do
orçamento da Saúde da Etiópia ver P. Espinoza Revollo et al. (2019). Public Good
or Private Wealth? Methodology Note. http://dx.doi.org/10.21201/2019.3651.
[50] Sociedade Civil foi uma expressão forjada pelo filósofo escocês
Adam Ferguson, no seu Ensaio Sobre a História da Sociedade Civil (1767), para significar o oposto ao indivíduo isolado, ou seja, a
situação em que vivem os seres humanos numa cidade. Os filósofos Emmanuel Kant
e Friedrich Hegel encarregaram-se de deturpar o seu sentido original. Kant
empregou-a para denominar uma sociedade baseada no direito, por oposição a uma,
anterior, designada por “estado de natureza”, onde supostamente vigoraria o
lema “cada um por si”. Hegel, no seu livro Elementos da Filosofia do
Direito (1827), traduziu-a para alemão como bürgerliche Gesellschaft
e empregou-a, por sua vez, para denominar uma fase ou estado intermediário no
relacionamento “dialéctico” entre os opostos percebidos por Hegel, a
macro-comunidade do «Estado» e a micro-comunidade da «família». De acordo com
este autor, a sociedade civil (bürgerliche Gesellschaft) era constituída
por associações, comunidades e corporações que teriam um papel normativo e
fundamental na relação entre os indivíduos e o Estado. A partir de Hegel foram
forjadas uma infinidade de definições de sociedade civil, todas elas glosando a
mesma ideia. Por exemplo, esta: «Sociedades civis são frequentemente povoadas
por organizações tais como instituições de caridade, organizações não
governamentais de desenvolvimento, grupos comunitários, organizações femininas,
organizações religiosas, associações profissionais, sindicatos, grupos de auto-ajuda,
movimentos sociais, associações comerciais, coligações e grupos activistas»,
Centre for Civil Society. London School of
Economics (http://www.lse.ac.uk/ collections/CCS/).
[51] Fonte: Global Wealth Report (2021). Crédit Suisse/ PWC.
[52] Citado por Noam Chomsky (https://www.globalpolicyjournal.com/blog/23/11/2018/noam-chomsky-moral-depravity-defines-us-politics), 23 de Novembro de 2018.
[53] Sobre as eleições
para o Congresso ver Thomas Ferguson, Paul Jorgensen, & Jie Chen, “How
Money Drives US Congressional Elections: More Evidence”, Institute for New
Economic Thinking Annual Conference, Paris, April 2015; “How Money Drives
US Congressional Elections”, Working Paper Nº. 48, Institute for New
Economic Thinking, 2016; “How money drives US congressional elections:
Linear models of money and outcomes”, Structural Change and Economic
Dynamics. Available online 20 September 2019; “Big Money Drove the
Congressional Elections — Again”, Institute for New Economic Thinking,
February 11, 2021. Sobre as eleições presidenciais, ver Thomas Ferguson, Paul
Jorgensen, & Jie Chen, “Party Competition and Industrial Structure in the
2012 Elections: Who’s Really Driving the Taxi to the Dark Side”, Roosevelt
Institute, October 21, 2013;
“Industrial Structure and Political
outcomes : the case of the 2016 US presidential election”, em I.
Cardinale and R. Scazzieri (Eds.), The Palgrave Handbook of Political
Economy, London, Palgrave Macmillan, 2018;
“Industrial Structure and Party Competition in an Age of Hunger Games:
Donald Trump and the 2016 Presidential Election,” Working Paper Nº. 66, Jan.
2018, Institute for New Economic Thinking; Thomas Ferguson, Benjamin
Page, Jacob Rothschild, Arturo Chang, & Jie Chen, “The Economic and Social
Roots of Populist Rebellion: Support for Donald Trump in 2016”, Working Paper
Nº. 83, Institute for New Economic Thinking, October 2018.
[54] Eric Galatas, “Report: Stark New
Evidence on Role of Money in Congressional Races”, Public News Service,
August 29, 2016 (https://www.publicnewsservice.org/2016-08-29/campaign-finance-reform-money-in-pol/report-stark-new-evidence-on-role-of-money-in-congressional-races/a53759-1).
[55] Martin Gilens & Benjamin I. Page,
“Testing Theories of American Politics: Elites, Interest Groups, and Average Citizens”,
Perspectives on Politics, 2014 September 2014, Vol. 12/Nº. 3.
[56] Martin Gilens & Benjamin I. Page,
Democracy
in America? What Has Gone Wrong and What We Can Do About It (University
of Chicago Press, 2017).
[57] Gilens & Page, op.cit., 2017.
Sem comentários:
Enviar um comentário
Comentário a um artigo publicado na Tertúlia Orwelliana